Martin Schulz, o eurófilo com o coração ao pé da boca

Na juventude foi alcoólico e sofreu uma depressão. Devoto aos livros e depois à política, destacou-se como um europeísta convicto
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Há quem diga que Martin Schulz, como Angela Merkel, está a viver uma segunda vida. O sonho de se tornar futebolista profissional esbarrou contra a realidade, no caso uma lesão no joelho. As consequências foram dramáticas: abandonou a escola (católica, da Congregação do Espírito Santo) sem concluir os estudos secundários e, já como militante do SPD e formado como livreiro, o jovem Martin afunda-se no alcoolismo e na depressão. Aos 24 anos deixa por fim a bebida e os pensamentos suicidas. A terapia ensina-o que os seus objetivos - acreditava que iria ser uma estrela dos relvados - não podiam ser tão ambiciosos e desligados da realidade, contou mais tarde.

Com alguma experiência no setor livreiro, recomeça em 1982 com a ajuda de um dos quatro irmãos, ao abrir uma livraria em Würselen. Mantém o negócio até 1994, ano em que é eleito deputado ao Parlamento Europeu. Debuta em 1984 como candidato ao conselho municipal e, três anos volvidos é eleito burgomestre (presidente do município) da pequena cidade. Um cargo que vai acumular com o de eurodeputado até 1997.

Filho de Albert (polícia) e de Clara Schulz, Martin nasceu em 1955 numa aldeia da Renânia do Norte-Vestefália a poucos quilómetros de Würselen, mais perto da holandesa Maastricht e à mesma distância da belga Liège do que de Colónia, a maior cidade alemã do estado. Muito novo compreendeu que para lá das fronteiras estavam seres semelhantes: o avô contou-lhe que teve de lutar contra primos holandeses e belgas, durante a I Guerra Mundial. Décadas depois, não escondeu a emoção ao anunciar a renúncia à presidência do Parlamento Europeu (saída que já estava acordada) e o regresso à Alemanha. Para trás ficaram 23 anos como representante da Alemanha - mas sobretudo como defensor da construção europeia. Tanto que Jean-Claude Juncker, com quem havia disputado a liderança da Comissão Europeia na sucessão de Durão Barroso, lamentou a saída: "Gostaria que Schulz não se fosse embora."

Schulz não deixa transparecer as emoções apenas quando se trata da sua vida - algo impensável de ver na sua adversária política. Dois anos antes, em dezembro de 2014, vimo-lo de olhos raiados e voz embargada de emoção durante a cerimónia de entrega do Prémio Sakharov ao médico congolês Denis Mukwege, que tem dedicado a vida a salvar mulheres vítimas de violações.

Em Bruxelas e em Estrasburgo, o deputado foi ascendendo lenta mas seguramente: em 2000 tornou-se o número dois do grupo dos socialistas e em 2004 assumiu a liderança desse grupo parlamentar. Antes deu-se a conhecer a meio mundo quando sugeriu que o então primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi poderia ter um conflito de interesses enquanto dono de um grupo de comunicação, e este, na volta do correio, sugeriu que o alemão fizesse o papel de kapo (líder dos prisioneiros nos campos de concentração nazis) numa série de televisão. "Por respeito às vítimas do nazismo", Schulz encerrou o caso que tanto furor fez na época. Mas a vingança, por interposta pessoa, serviu-se mais tarde. O antigo livreiro fez uma campanha que acabou com as pretensões de Rocco Buttiglione, indicado por Berlusconi para comissário europeu da Justiça e Liberdades da Comissão liderada por Durão Barroso. As posições conservadoras de Buttiglione sobre as mulheres e os homossexuais foram denunciadas pelo alemão. A aprovação, pelo Parlamento Europeu da segunda Comissão do político português também envolveu negociações com o líder parlamentar alemão. Nessa altura foi brindado por Jean-Marie Le Pen com a formulação "o presidente do grupo socialista no Parlamento é um senhor que tem a cabeça de Lenine e fala como Hitler".

É com naturalidade que este poliglota (além da língua-mãe, fala francês, inglês, holandês, italiano e espanhol), em 2012 é eleito presidente do Parlamento Europeu com um objetivo claro: equiparar o cargo em importância aos da presidência da Comissão Europeia e do Conselho. Do seu lado, o argumento de que se trata do único órgão democrático nas instituições europeias. Seja para apoiantes, seja para críticos de Martin Schulz, é consensual que este deu uma projeção inaudita à sua atividade e, por extensão, à da câmara com os eleitos dos 28 países.

Se os observadores de Angela Merkel cunharam o verbo "merkelar" como sinónimo de navegação à vista, ou de nada fazer e dizer sobre um assunto, ou ainda de ser ambígua nas declarações, Schulz é o oposto. Levanta a voz contra os abusos dos direitos humanos do presidente turco, alerta para os investimentos de chineses e angolanos em Portugal, critica o "destruidor de todos os valores ocidentais" Donald Trump e vocifera contra os autores do brexit.

Durante um breve período, o social-democrata teve sondagens que lhe deram alento até para convidar Angela Merkel a ocupar o cargo de vice-chanceler num governo liderado por si. Um cenário que parece cada vez mais improvável.

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