Martha Argerich de pijama: um serão com a grande pianista
Stéphanie Argerich não estava a ser irónica quando, no filme Bloody Daughter, disse que ser filha da pianista Martha Argerich é "como ser filha de uma deusa". "Quis mesmo dizer isso. Ela é metade humana, metade deusa. Não tem nada que ver com a forma como as pessoas a tratam. Tem que ver com o seu acesso a algo que acho que não é acessível à maioria dos humanos. E claro que é um acesso a algo espiritual acerca da música. Depois, acho que também se trata de muito amor pelo que ela faz. Claro que é um talento - tens de ter algo -, mas há tanto amor!"
Stéphanie falava depois de o seu filme ter sido projetado, no passado sábado, no Lisbon & Estoril Film Festival (LEFFEST). Sentámo-nos num sofá do Teatro da Trindade. A Martha Argerich, nem vê-la. Estava retida por dezenas de pessoas que queriam um autógrafo seu. Uma breve passagem pela fila que se formara deixava compreender rapidamente - através das conversas - a quantidade de jovens músicos que ali se encontrava.
Argerich, nome maior da música clássica e um dos grandes do piano da sua época: as mãos pequenas, o cabelo ainda comprido e em movimento, mas já não preto, agora grisalho, e a impressão de que ela, hoje com 75 anos, é uma só com o piano, instrumento que começou a tocar, como lembra no filme, ainda antes dos três anos. Na noite em que Lisboa viu esse filme que a filha mais nova de Argerich fez sobre a mãe, ouvimo-la ainda tocar a quatro mãos, com o lituano Itamar Golan, Ma Mère L"Oye, de Ravel.
Quando, depois, a pianista argentina voltou a entrar no palco do Trindade, ao lado da sua filha e de Paulo Branco, produtor do festival que conduziu uma breve conversa entre as duas, foi quase estranho ver a esquiva Martha Argerich descontraída, a rir e, parodiando, a falar o "portunhol" que sabe, antes de se fixar no francês, língua que é a sua desde que, adolescente, veio para a Europa.
A pianista - que no mês passado voltou ao auditório da Fundação Gulbenkian - é avessa a entrevistas, há décadas que evita os concertos a solo, e é conhecida por cancelar espetáculos em cima da hora, hábito que se começou a formar aos 17 anos, num concerto em Florença. Aquela que aos 24 anos se mostrou a quem ainda não a conhecia, ao vencer o Concurso Chopin de Varsóvia, não queria tocar naquela noite em Florença, e por isso cortou um dedo, para não ter de mentir no telegrama que enviou à organização do concerto. Quem o conta é a própria, num outro filme, Martha Argerich: Evening Talks (2002), de Georges Gachot. Também em Bloody Daughter (2012) assistimos a uma cena do género.
Antes de entrar em palco, ouvimo-la repetir sentenças como "Não quero mesmo tocar", ou "Não é bom ter de tocar neste momento. Não quero mesmo. Não sei o que fazer." Todavia, daquela vez, quando lhe abrem a porta para o palco, encolhe os ombros e responde: "Acho que sim." Vemo-la então entrar para o palco e ser a Martha Argerich, ou seja, tocar. "Acho que a ansiedade dela antes de entrar em palco é uma forma de se pôr numa certa condição, sabes? Como os pugilistas saltam um pouco. Acho que esta é a forma dela para aquecer. Mas acho também que há sempre uma parte dela que não quer. Como uma pequena rapariga a quem foi dado um talento enorme sem realmente perceber porquê", explica Stéphanie.
A terceira filha de Argerich, que só teve raparigas e todas elas de pais diferentes, é fruto da relação desta com o pianista Stephen Kovacevich, também retratado no filme. Começou a filmar a mãe sem saber que Bloody Daughter nasceria dali. "Tinha vontade de a filmar. Há um momento em que nos pomos certas questões", disse Stéphanie, nascida em 1975, na Suíça. É a única pessoa a quem Martha "deixa fazer tudo, ainda hoje", contou a pianista perante uma sala repleta. Ela que, pelos seus hábitos notívagos, acorda tarde, e é por isso que a vemos tantas vezes de pijama no filme, a acordar, a conversar com a filha, a revelar a sua preferência por Schumann - sobretudo ele - e Beethoven. "É assim que nós somos, é assim que nos comportamos, é assim que eu a vejo na maioria das vezes. E esta é a nossa história. Não lhe ia pedir para se comportar de outra maneira, ou usar outra roupa", afirma a realizadora ao DN.
O sorriso de Mona Lisa
Stéphanie cresceu com a mãe e com a irmã Annie Dutoit, filha do maestro francês Charles Dutoit, com quem Martha foi casada. Lyda Chen, a primeira filha da pianista, só apareceria tarde nas suas vidas. Argerich perdeu a sua custódia quando esta era bebé, e ela cresceu com o pai, que a proibia de tocar piano, por ter uma mãe com quem nunca poderia competir. Lyda, que se tornou violinista, cresceu com uma única gravação da mãe a tocar. "Era a minha companheira. Punha-a a tocar enquanto brincava com os meus bonecos, os Estrunfes [Smurfs]. Inventava histórias para os Estrunfes com o terceiro concerto de Prokofiev", diz no filme. Quando perguntamos à filha mais nova o que a mãe teve de sacrificar pela sua carreira, esta responde: "É a vida dela, não se trata de sacrifícios. Não há divisão; neste tipo de músicos, tudo está junto."
Em Bloody Daughter, Stéphanie faz com que Argerich nos receba de pijama, e, ainda que continuemos a ser público, já não a fazemos não querer tocar, ou ela já não nos faz perguntar se o piano é um velho amigo ou um campo de batalha. Ali vemo-la a pintar as unhas dos pés - todas de cores diferentes - com as suas três filhas e um neto (filho de Stéphanie), sobre uma manta, num parque. Ouvimo-la a falar dos dois anos da sua vida em que não quis tocar piano, e para os quais a única tradução que encontra é "Como se tu corresses muito e, de repente, durante alguns anos, nem sequer caminhas, ou nem podes fazê-lo." Vamos com as duas à Buenos Aires que a viu nascer, e vemos o que o seu pai escrevia sobre ela no verso das fotografias da sua meninice que guardava: dizia que ela era "carinhosa e diplomática", e que "dizia as coisas sem as dizer". Talvez por isso mesmo o seu sorriso seja tantas vezes comparado ao de Mona Lisa. Mas afinal, e ela própria o afirma, "Não serve de nada falar de música. É inútil."