Marrocos-Argélia: Da "Guerra das Tâmaras" à pilhagem cultural!
Serve a presente crónica não para elencar o ridículo da guerra, mas para assinalar o lado mais invisível e até certo ponto desesperado de quem a quer evitar, utilizando diferentes armas para o fazer.
No contexto da disputa sahraoui entre marroquinos e argelinos, estes últimos começaram pela "bomba atómica" ao utilizarem a "arma do gás" ao cortarem o fornecimento deste a Marrocos, privando o estratégico parque industrial de Tânger da sua laboração normal e lançando o Palácio e o Governo na procura desenfreada por alternativas. Neste particular, Marrocos tem conseguido colmatar esse corte, embora ainda não durma descansado, apesar do contexto de guerra na Europa não lhes ser totalmente desfavorável, já que o gás russo, os cortes e dinâmicas envolventes têm feito parte dos assuntos do dia.
Marrocos, certamente o mais prejudicado entre ambos, caso um cenário de guerra directa com o vizinho leste venha a acontecer, tem respondido inteligentemente num crescendo de sanções possíveis e denúncias face aos actos e postura argelina, nos mais insuspeitos quadrantes da política, da economia e da cultura também. Já aqui referi o enquadramento do boicote à importação de tâmaras argelinas durante o Ramadão de abril último, com a justificação de se tratarem de "tâmaras radioactivas", por serem originárias da região onde franceses realizaram os seus testes nucleares na década de 1970, muito após a independência da Argélia em 1962.
A polémica desta semana, é Marrocos acusar a Argélia de "pilhagem cultural", por via de um cartaz que publicita o Salão de Artesanato de Tlemcen, cidade/região argelina colada à fronteira oriental marroquina, na costa mediterrânica. O cartaz apresenta uma imagem icónica de promoção do turismo e cultura marroquina, uma mais que conhecida velinha berbere a fiar lã. A queixa é legítima, como foi legítima uma outra também já aqui apresentada e na qual a organização do Mundial de Futebol Qatar 2022, também utilizou outro ícone marroquino e berbere, a porta que, para a distinguir das nossas lhe poderemos chamar de "porta-abobadada", embora não o seja, já que a porta só ganha essa forma por se encontrar atrás da fachada cujo vão da porta se encontra em forma de "arco de ferradura". Estas portas, apresentadas no cartaz Qatar 2022, simbolizavam o apuramento/entrada de cada uma das selecções no evento de novembro próximo, levantaram a ira dos berberistas militantes em Marrocos, exigindo um Mundial apenas árabe e não apropriador e uma vez mais colonizador e aculturador das culturas autóctones do Grande Magrebe.
Naturalmente que esta denúncia marroquina ao cartaz de Tlemcen (Argélia) está enquadrada na crescente tensão de guerra entre vizinhos e serve de "paliativo público" para a guerra quase secreta que se desenrola a sul com os sahraouis independentistas. Este será o lado mais visível, o de comprometer e denegrir o inimigo sem recurso à violência. O lado menos visível e também menos falado, é o de uma vitória berbere, também ela silenciosa. Marrocos ao acusar o vizinho de apropriação cultural, também está a definir para os seus a transversalidade e importância da cultura e ícones berberes enquanto esteira da própria cultura marroquina. Na Argélia, os berberes de Tlemcen também deverão sorrir com este fait-divers regional, já que sabem que a velinha marroquina do cartaz, não será em nada diferente de uma velinha argelina, ambas berberes, ambas a desafiar as fronteiras impostas pelos sedentários europeus aos nómadas locais. No fim da polémica, ganha quem sempre lá esteve a fiar lã!
Politólogo/arabista www.maghreb-machrek.pt
Escreve de acordo com a antiga ortografia