É um pediatra que se comove com as aventuras do ursinho Paddington. Mário Cordeiro, 64 anos, abomina a ostentação dos sinais exteriores do poder médico (como a bata branca ou o estetoscópio) e privilegia a importância da comunicação na medicina. Não admira, pois, que seja autor de uma vasta bibliografia destinada a miúdos e graúdos (como o livro Príncipes de Medicina, publicado em 2016, no qual revisita as vidas de várias dezenas de médicos que, desde a Alta Antiguidade até tempos bem recentes, se destacaram também pela paixão aliada ao rigor ético). Uma atividade que proporciona muito prazer a este leitor compulsivo que, em criança, se sentava em cima das páginas então gigantescas do Diário de Notícias para o ler melhor..Filho e neto de médicos de origem goesa, Mário seguiu naturalmente esse caminho profissional, sem que alguma vez se sentisse pressionado na escolha: "Ambos me ensinaram muito, ao longo dos seus percursos de vida. Aprendi o que é a frugalidade, a exigência pessoal, a necessidade de rigor, a vontade de estudar e de me aperfeiçoar, a dimensão ética e vasta do papel do médico, que tem de ser uma pessoa aberta, completa, pluridisciplinar, entendendo os fenómenos com o rigor dos factos científicos, mas ao mesmo tempo com uma visão sistémica e realista deles. Paralelamente, tive o privilégio de conhecer grandes médicos portugueses e estrangeiros, dado o papel de relevo que o meu pai teve em várias organizações nacionais e internacionais.".Também ao exemplo paterno foi buscar a preferência pela pediatria: "Gostava muito do que fazia e transmitiu-me as suas ideias. Desde pequenino que ia com ele ver doentes, no tempo em que se faziam visitas domiciliárias ou quando, na altura da gripe, atendia à hora da refeição inúmeros telefonemas de pacientes. O velho "telefone fixo de massa" era o único meio de comunicação imediata. Estava sempre disponível e estudava muito, escrevia artigos. Só tenho pena de que tenha morrido tão cedo, justamente quando eu começava a dar os meus primeiros passos na medicina, fez agora 40 anos." Para a escolha contribuiu ainda a omnipresença de crianças na sua vida: "Tive o primeiro de muitos sobrinhos aos 10 anos e sou pai de cinco filhos. Se a isso somarmos os pacientes do meu pai, estive sempre rodeado de crianças.".Com uma visão humanista e global da medicina, Mário Cordeiro encara as exigências que a pandemia faz aos médicos e aos profissionais de saúde em geral com estoicismo mas também com confiança: "A medicina, tal e qual as outras ciências, nomeadamente as não exatas, está e estará sempre em evolução. Resolvemos um problema e surgem outros, mas o ser humano, com a sua capacidade criativa, raciocínio, inteligência e abnegação, consegue mover montanhas. Melhor seria se houvesse mais compromisso e vontade política." E logo acrescenta: "Todavia, o caso atual da pandemia mostra o que a ciência consegue se se juntarem esforços e se houver cooperação. O corpo humano, o funcionamento do cérebro, os sentimentos e as emoções, os comportamentos, a mistura de força e fragilidade que temos, as nossas vulnerabilidades são aspetos fabulosos em que tanto e tanto há a fazer. Quanto mais desvendamos, porventura mais desafios se nos afiguram. Ainda bem. Estamos vivos..." Heróis da medicina.Foi este espírito de missão que o levou a dedicar dois anos de investigação e escrita às biografias de médicos que foram muito mais do que profissionais competentes: "Sempre tive um fascínio grande por história, e ao mesmo tempo pelas personagens que nela se destacaram. Já tinha escrito um livro biográfico sobre o meu avô, Júlio Gonçalves, um médico que foi muito mais do que isso, e apeteceu-me fazer este tipo de investigação. Achei, também, que poderia ser útil a muita gente, e a prova é que deu origem a vários programas da RDP Antena." A escolha dos perfis a retratar não foi propriamente fácil: "Procurei quem tivesse sido, além de um médico dedicado, um valor importante na pintura, escultura, poesia, música, literatura, política, filosofia, história ou na defesa intransigente e corajosa dos direitos humanos. São estes verdadeiros príncipes, pelo que representam de exemplo e modelo a analisar, admirar e, eventualmente, seguir." Vidas que não foram propriamente cómodas ou privilegiadas, como sublinha este biógrafo rendido à nobreza de tais exemplos: "Muitos pagaram elevados preços por terem tido uma intervenção política e social. São príncipes no sentido de se terem transcendido. Estas mulheres e estes homens não visavam o lucro nem pretendiam gerar proventos para quaisquer acionistas, apenas queriam aperfeiçoar-se, a eles e à humanidade.".Esta visão global e pluridisciplinar da sua profissão assenta com a justeza de uma luva a um médico que toca piano e violino. Isto para não falar na sua precoce paixão pela leitura, mas também pela escrita: "Aos 10 anos criei um jornal, o Trapalhadas, em que escrevia editoriais, romances, contos, anedotas... enfim, aquilo a que uma criança acha graça. Usava a máquina de escrever e depois, graças a uma inovação técnica extraordinária que era a máquina fotocopiadora, lá reproduzia aquilo em vários exemplares. Era lido pela família toda" (um gosto que parece ter transmitido ao seu filho mais velho, Pedro, jornalista do Expresso)..Não foi uma paixoneta adolescente. Mário não mais deixou de se repartir entre poesia, a ficção, peças de teatro e a biografia, género que lhe agrada particularmente: "Publiquei o primeiro livro em 1991, um romance, intitulado Jogos de Verão. Todavia, os livros "para pais e educadores" também me dão muito prazer. Ou biografias. Tenho receio é de não ter tempo que chegue para escrever tudo o que desejava.".Mais recentemente, Mário Cordeiro lançou-se na escrita para um público que lhe é especialmente próximo, as crianças, através das coleções As Aventuras do Urso Malaquias (Porto Editora) e Os Conselhos do Dr. Júlio (editada e comercializada pelo Pingo Doce, vocacionada para a educação em saúde dos mais pequenos). Tendo ele próprio um carinho especial por personagens da literatura infantojuvenil bem presentes no seu consultório, como o ursinho Paddington ou Winnie the Pooh, o pediatra nunca deixa de "receitar" mais e mais leitura: "Não posso deixar de dizer que uma das coisas que considero indispensáveis é ler. Ler, ler, ler. Leio muito, mas comecei logo no 1.º ciclo a devorar livros. Quem lê muito escreve melhor e fala melhor, argumenta melhor e torna-se uma pessoa mais completa. Pena que, nas famílias e na escola, a leitura ainda não tenha merecido o incremento que deveria ter. Até ao 1.º ciclo, as crianças ainda gostam de ler; depois, é o descalabro. Tenho pena, porque acho que é um tiro no pé da humanidade e da civilização.".Do que Mário Cordeiro nunca abdica é do poder terapêutico da alegria e do humor, como se vê no seu consultório, que mais parece um luminoso quarto de brinquedos: "Gosto da natureza, dos animais, da amizade, e contento-me com pouco, mas sem uma pitada de humor e de beleza o mundo fica oco e vazio."