Marinheiros, piratas, prisioneiros, na noite mais longa de Lisboa
Faltava uma hora para o início oficial das marchas e a Rua Braamcamp, junto ao Marquês de Pombal, é seguramente a mais colorida de Lisboa. Marinheiros cruzam-se com piratas que se cruzam com prisioneiras, arcos com lagostas gigantes ocupam vários metros da estrada, marchantes de todas as idades, já vestidos a preceito, trocam dois dedos de conversa, os mais entusiastas entretém-se a entoar os seus "gritos de guerra". O desfile das marchas ainda não começou, mas o espetáculo sim.
São as marchas populares antes de se ligarem as câmaras e os holofotes. "Esta é a parte do convívio", diz Manuel Domingos, aguadeiro da marcha do Bairro Alto. E o que faz exatamente um "aguadeiro"? "Faz tudo menos dar águas", responde de volta. "Faz todo o apoio logístico. Deve ser das pessoas mais importantes das marchas", diz quem foi marchante "uns quarenta e poucos anos". "Agora já não tenho capacidade de estar ali a fazer passos de ballet", remata Manuel Domingos. Mas, voltando ao convívio em torno das marchas: "Aqui é que se mostram as rivalidades, mas sadias. Fazem-se amizades para a vida. E grandes casamentos." Pausa. "E estragos em casamentos também."
Junto ao Marquês de Pombal, as primeiras marchas a desfilar já vão alinhando na rua, mais acima ainda é hora da fotografia. Os vencedores do ano passado identificam-se pelas T-shirts - "Grande é a marcha que Lisboa ilumina, Alto Pina 16". Sentada no passeio, já vestida a rigor, Filipa Valente diz que o título não pesa: "É tranquilo."
Horas antes, Filipa Grouva também aguardava sentada no passeio, mas ainda em Alfama, antes da saída para a Avenida. É o terceiro ano que veste as cores deste bairro. Antes ainda desfilou pela Penha de França e foi precisamente nas marchas que conheceu o marido, também ele marchante. Mas em 2014 a Penha de França não desfilou e Filipa e o marido resolveram escolher os bairros "do coração". Resultado: ela marcha por Alfama, ele pelo Alto do Pina, as duas marchas que têm disputado a vitória nos últimos anos. Por agora, o casal tem como saldo um empate - uma vitória para cada lado. Na madrugada de hoje se saberá se alguém passa à frente.
Já há drones no Santo António
O relógio marcava nove da noite quando a marcha infantil A Voz do Operário, convidada pela EGEAC e extracompetição, abriu o desfile. Depois, as 20 marchas a concurso foram aparecendo junto à rotunda do Marquês de Pombal. Apesar do vento e frio que começava a sentir--se, ninguém arredou pé. E por falar em pés a marcha da Madragoa desceu até aos Restauradores... descalça. Por ali, ninguém deixou nada ao acaso. Antes do arranque, havia um drone a sobrevoar o grupo - dos mais animados e barulhentos. Já o Alto do Pina, a defender o título, impressionava pela dimensão e organização. A Penha de França apostou em réplicas dos clássicos cacilheiros para embelezar o desfile, ao passo que São Vicente deu ao zé-povinho um lugar de destaque, aproveitando o facto de se comemorar o 170.º aniversário do nascimento de Rafael Bordalo Pinheiro. Intervalados por dez minutos, os grupos iam saindo e nas bermas repetiam-se os gritos de incentivo a cada bairro.
Isabel Ferreira e Clóvis Rodrigues vão descendo a Avenida. Os nomes parecem portugueses e no caso de Clóvis são mesmo ("os meus avós eram de Trás-os-Montes, ainda se chama assim?"), mas são brasileiros a visitar Portugal pela primeira vez. Não sabiam dos Santos Populares e descobriram de uma forma sui generis : chegados a Alfama, onde alugaram um apartamento, perceberam que alguma coisa se devia passar quando viram uma multidão na rua, contam, a rir. Outra surpresa foi não conseguirem chegar de carro a casa. "Tivemos de subir o morro." Vindos de Maringá, no Paraná, dizem estar "encantados" com Lisboa e planeiam voltar no próximo ano.
Sardinha a um euro e meio
Colin McLennan, escocês de Glasgow, e Katie Furlas, de Londres, acabaram de chegar. Andam à procura de um sítio onde se sentar, em Alfama. Não fazem ideia do que seja o Santo António, mas já tinham ouvido falar num "grande festival" em Lisboa neste fim de semana. Ao final da tarde, o "festival" já é grande: o bairro já entrou em força na noite de Santos. A sardinha vende-se a um euro e meio. Junto ao Beco do Pocinho, numa banca que explora com a filha e o neto, dona Carmelinda, do alto dos seus 82 anos, tem resposta pronta para a pergunta "há mais estrangeiros neste ano?": "Há, então não há... E moram cá."