Marinha Grande. A cidade que abriu uma porta para os sem-abrigo

Não vivem na rua mas ocupam casas abandonadas. Desde esta semana os sem-abrigo da Marinha Grande têm oportunidade de mudar de vida, com a ajuda da câmara e de uma associação. Há 400 pessoas na mira da Novo Olhar II.
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No número 22 daquele bairro social da Marinha Grande há novos inquilinos desde o dia 22. Uma espécie de capicua com o condão de fazer dar certo a vida dos que ali vão parar. São pessoas sem-abrigo. A notícia pode chocar quem imagina ser esse apenas um cenário de grandes centros urbanos, mas não quem convive com a realidade social daquela cidade. A mesma que é "capital do molde", que chegou a ser apontada como de pleno emprego e nível de vida superior a qualquer outra do distrito de Leiria, consegue também fazer o pleno no que toca à vulnerabilidade de alguns habitantes. Alguns deles têm agora uma nova janela de oportunidade na porta nº 22 daquele bairro.

É uma casa antiga, com dois quartos, casa de banho uma sala e uma cozinha, um pátio com uma divisão ao fundo, que poderá ser um terceiro quarto. Nesta manhã de quinta-feira, que é o quarto dia dos dois homens agora com abrigo, há fruta fresca na cozinha, chávenas de café arrumadas em cima da mesa. De uma porta entreaberta pintada de azul ouve-se o som entrecortado de um rádio, que deixa a música impercetível. Mais ou menos como a vida de Manuel e Pedro, chamemos-lhe assim.

Célia Guerra, vereadora da Câmara da Marinha Grande com o pelouro da ação social, lembra que este era um projeto há muito pensado. Quando chegou ao executivo, em 2017, já estava identificada a necessidade de conseguir um espaço para acolher pessoas sem-abrigo. "O número que me foi dado é que havia 13 pessoas a viver não na rua, mas em situações muito precárias". E esse é o conceito que se altera, quando comparado com o cenário dos grandes centros: "aqui não vemos pessoas a dormir na rua, ou nos beirais, mas eles existem, ocupando casas abandonadas", explica ao DN Ana Patrícia Quintanilha, presidente da Associação Novo Olhar II, que há 20 anos faz trabalho social em várias cidades, entre elas a Marinha Grande. À semelhança do vice-presidente, Carlo Melo (também ele técnico de serviço social), Ana Patrícia começou esta demanda em Coimbra, mas foi no polo da sua cidade que se estabeleceu.

Um percurso de reinserção, passo a passo

Quando a habitação social do nº 22 ficou desocupada, estava encontrado o local para criar uma unidade de alojamento temporária. "Há um regulamento, as pessoas são identificadas pelas equipas de rua da Novo Olhar, ou por qualquer entidade da nossa rede social, os técnicos analisam o processo, é feita a avaliação (se tem condições ou não para entrar na casa) é feita a proposta, e depois decidido por uma comissão", explica Célia Guerra. Ao lado, Ana Patrícia complementa: "isto é um percurso de reinserção. A pessoa não se limita a vir para aqui temporariamente. É um sistema de passos. É feito um acolhimento e diagnóstico social, com um sistema de proteção e reinserção onde se inclui esta etapa, tão importante: tirar a pessoa da rua para conseguir organizar-se e depois ter a sua autonomia".

Paralelamente, é feito um trabalho ao nível da saúde e da proteção social. "Vamos tratar de tudo o que for possível. A vacinação, por exemplo", acrescenta Carlo Melo. Pedro é um deles, que ontem mesmo ia ser vacinado contra a hepatite B. "A enfermeira da associação fez esse trabalho, ir buscar o histórico de vacinação destas pessoas, para perceber em que ponto estavam".

Os dois homens que agora habitam na casa 22 foram ambos sinalizados pela autarquia. Depois, Ana Patrícia e Carlos fizeram uma pormenorizada entrevista e análise de caso. Porque a casa tem regras "e eles têm que as aceitar. Por exemplo, uma pessoa foi excluída porque queria trazer o cão. Não pode. Imagine que cada um queria trazer um animal. O compromisso que fazemos com eles é esse, de respeitarem as regras, e um plano de reinserção", adianta a presidente da Novo Olhar II.

O projeto começou a ser trabalhado em 2018, mas só agora foi possível "preparar a casa e receber as pessoas com todas as condições que elas merecem", esclarece ao DN Célia Guerra. O conjunto de regras inclui também não fumar dentro da casa, não beber álcool , "não trazer outras pessoas. E se tiver patologia psiquiátrica, tem que ter acompanhamento. Ou seja, tem que estar disposto a mudar de vida", sublinha a responsável Ana Patrícia.

20 anos a olhar pelos mais vulneráveis

Há 20 anos que a Associação Novo Olhar II acompanha a população mais vulnerável da Marinha Grande: sem-abrigo, toxicodependentes, pessoas com perturbação psiquiátrica, trabalhadores do sexo, doentes com VIH. Há diariamente três equipas, uma que trabalha diariamente na rua, uma é noturna, outras diurnas, cada uma delas constituída por três pessoas. São todos técnicos superiores, um projeto certificado pelo SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências).

Em duas décadas, muita coisa mudou por ali (e pelo país). Ana Patrícia Quintanilha considera que estamos perante uma realidade diferente. "Não vemos pessoas a dormir na rua nem nos beirais da Marinha, mas eles existem ocupando casas - abandonadas. Aí vivem. É um grande risco para todos e que temos vindo a chamar a atenção". Há três anos a associação (que tem o estatuto de IPSS) fez um levantamento exaustivo, quando surgiu a estratégia nacional para os sem-abrigo. "Foi nessa altura que chegámos à conclusão que precisávamos de uma resposta como esta. Foi quando se tentou perceber o que era um sem-abrigo: aquele que dorme à luz das estrelas ou que tem a casa a cair?"

O facto da Marinha Grande grande ser um polo industrial com muito desenvolvimento económico "não significa que não existam problemas sociais. Existem e são graves. Podem é não ser visíveis", sustenta a responsável. "Comparativamente a Leiria, por exemplo, temos mais problemas sociais e no entanto somos a capital do molde".

Como se justifica, afinal, essa moldura debilitada? "Um dos fatores é precisamente a questão do emprego. Há muitas pessoas que vêm viver para a Marinha Grande porque consideram que aqui o emprego é garantido. E depois quando as coisas não resultam, as pessoas ficam desempregadas, sem estrutura, sem rede de suporte, o que dificulta tudo. Depois há a questão das drogas, que sempre fustigou esta terra".

Mais uma vez, é preciso estabelecer um termo de comparação. "Temos evoluído em termos de medidas de proteção. Mas isso não significa que essas medidas sejam suficientes para resolver o problema. Pode ser atenuado, mas não resolvido".

Quando olha para este percurso, Ana Patrícia Quintanilha não tem dúvidas de que o retrato se alterou. "Hoje já não existe o consumo de heroína como existia há 15 anos, por exemplo. O tráfico também não existe como existia há dez anos. As coisas estão mais controladas. O número de pessoas que nós temos como toxicodependentes não é o mesmo que tínhamos há 15 anos, é inferior". Carlo Melo atira o exemplo: "trocávamos à volta de 7 ou 8 mil seringas por mês. Agora trocamos cerca de mil, por vezes 600".

Mas essa "redução enorme" não significa "que não existam outros consumos, outras drogas, outras patologias. O mundo evolui e estas coisas também".

Nesse bolo de pessoas vulneráveis que a Novo Olhar II acompanha, há uma fatia que mais preocupa os responsáveis - "são as pessoas com perturbação psiquiátrica, envelhecidas, e sem rede de suporte familiar e social". No total, cerca de 400 pessoas estão na mira da associação. Algumas talvez venham a entrar pela porta da Casa 22, e ganhar um projeto de vida.

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