Marianne Faithfull e Patti Smith. As avós do rock separadas à nascença

Com um dia de intervalo, duas mulheres marcantes da música popular atingem o estatuto de septuagenárias. A geografia e os ritmos próprios tornam escassas as aproximações entre ambas. Apesar de tudo, há datas e factos comuns
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A 17 de maio de 1979, Patti Smith fechava o quadrado do seu primeiro ciclo, com mais uma "provocação": a madrinha do punk praticado à americana mostrava o seu desdém pela febre da new wave, ao escolher para título do seu quarto álbum uma só palavra: Wave. Mais um disco de afirmação plena, com canções definitivas, como Frederick e Dancing Barefoot, mais do que Revenge ou Citizen Ship, e com um alerta premonitório: a versão de So You Want to Be a Rock"n"Roll Star, um desencantado original dos Byrds. Mal se sabia, por esses dias, que, depois de uma avalancha de música (quatro álbuns desde 1975), esse era o último sinal gravado antes de um longo período de silêncio.

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A 2 de novembro do mesmo ano, o mundo das canções presenciava e aplaudia uma ressurreição, quando Marianne Faithfull deitava para trás das costas o período mais difícil da sua vida e lançava o espantoso Broken English, ainda hoje o seu álbum mais emblemático, capaz de reunir um tema-título autobiográfico, uma nebulosa Witches" Song, um desafio chegado ao reggae em Why D"Ya Do It e a pérola suprema que se revela em The Ballad of Lucy Jordan. Para quem vinha de uma década inteira passada sob o espectro da morte, sob o manto cruel da dependência e sob o signo da errância, a surpresa dificilmente poderia ser maior. Se outros motivos não houvesse - e houve... -, a conjunção astral permitia fixar 1979 como um ano feliz para estas duas mulheres, que se despediram dele festejando - com um dia de intervalo - o 33.º aniversário e que, porventura pela primeira vez, podiam ombrear nos méritos e na fortuna.

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Já antes, em 1976, tinham coincidido em edições - mas, nessa ocasião, Patti reforçava os seus domínios da palavra e da música com Radio Ethiopia, enquanto Marianne se limitava a "picar o ponto" com Dreamin" My Dreams (mais tarde rebatizado como Faithless), um álbum em que se dedicava à country music e que se revelou, como outros da sua lavra, dispensável, para não dizer penoso. Antes, em 1975, a distância que as separava era ainda maior: a americana revelava-se com o inesquecível Horses, produzido pelo mestre John Cale (dos Velvet Underground), um batismo de voo que ainda hoje nos leva a planar, enquanto a inglesa interrompia uma longa temporada como sem-abrigo e conseguia ocupar uma casa em Chelsea, Londres, que, mesmo não dispondo de água quente nem de luz elétrica, representava uma reaproximação à "civilização", tal como a concebemos. Mais duradoura foi a sua luta contra as dependências, uma vez que Marianne foi saltando de droga em droga (sobretudo entre a heroína e a cocaína) e desbotando as cores vivas de um princípio de carreira que a projetou para o naipe das estrelas.

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Patti e Marianne só voltariam a "partilhar" mais um ano - 1997 - com novos discos. Nesse caso, a primeira assinou Peace and Noise, de que saltaria a canção 1959, candidata a ganhar um Grammy reservado à melhor performance vocal feminina na área do rock, enquanto a segunda editou 20th Century Blues, em que se dedicou a uma das suas áreas de reportório favoritas, as canções de Kurt Weill, sem esquecer temas de Noël Coward ou Harry Nilsson.

Raízes distintas

Agora, ambas estão a festejar a passagem à condição de septuagenárias - Marianne nasceu a 29 de dezembro de 1946, em Hampstead, Londres, Patti no dia seguinte, em Chicago, Estados Unidos. À nascença, num pós-guerra que ambicionava esquecer as nuvens negras, era muito mais aquilo que as separava: o pai de Marianne era oficial do exército e professor de Literatura Italiana, a mãe uma aristocrata austro-húngara, cuja família abrangia, entre outros, um nobre tio-avô chamado Leopold von Sacher-Masoch, cujo nome daria origem à expressão masoquismo (algo que, em boa verdade, pareceu acompanhar parte substancial da existência da cantora e atriz). Já Patti era filha de um operário e de uma empregada de mesa, testemunha de Jeová, algo que desencadeou uma educação profundamente religiosa. Foi, ainda por cima, submetida a várias mudanças, vivendo em Filadélfia e depois no estado de New Jersey.

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Ambas foram mães muito cedo: Marianne aos 20 anos, com o filho, Nicholas, a resultar do seu casamento com John Dunbar, rapidamente desfeito em função do seu romance "de sonho" com Mick Jagger, oficialmente "inaugurado" em 1966; o caso de Patti foi mais dramático, uma vez que a filha, nascida em 1967 (quando ela tinha 22 anos) acabou por ser adotada, para evitar o escândalo. Apesar de se terem tornado figuras públicas por força da música com mais de uma década de intervalo, há um dado curioso que as aproxima: nenhuma delas compôs as canções que renderam as primeiras atenções, uma vez que Marianne se estreou em disco com As Tears Go By, escrita por Mick Jagger e Keith Richards - Marianne diria mais tarde que contam mais as reinterpretações "maduras", uma vez que o tema tem mais a ver com uma mulher de 40 anos do que com uma miúda de 17 -, enquanto Patti viu escolhida como canção em avanço de Horses a sua versão do clássico Gloria, de Van Morrison e dos Them. Têm, ainda assim, uma ponte que as une, na direção de Bob Dylan - Marianne cantou, ainda em 1964, Blowin" in the Wind, no seu segundo single, enquanto Patti recebeu, como oferta da mãe e como primeiro disco da sua coleção, uma cópia de Another Side of Bob Dylan, também de 1964. De resto, essa ligação - mesmo distante - a Dylan, confirmou-se ainda neste mês, quando foi Patti Smith a cantar um tema (A Hard Rain"s A-Gonna Fall) do laureado com o Prémio Nobel na cerimónia de Estocolmo.

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Outra particularidade que congrega estas duas almas - a de serem leitoras ávidas, desde a infância até hoje. Já na escrita, se Marianne se fica pelos escritos auto-biográficos (vamos em três volumes e talvez haja mais a revelar), Patti publicou mais de uma dúzia de livros de poemas, desde 1972 (data anterior à sua "explosão" como cantora e performer). Curiosamente, foi com o relato de parte da sua vida, a fase em que chegou a Nova Iorque e manteve uma relação de amizade e de intimidade com Robert Mapplethorpe, que Patti conquistou o National Book Award. O livro, Just Kids, também já teve "sequela", em M Train.

Encontros e desditas

Há ainda mais dois "encontros" práticos de Faithfull e Smith: se Patti se estreou com o já referido Horses, em 1975, Marianne demorou três dúzias de anos a "responder", até que, em 2011, publicou Horses and High Heels. Maneiras de estar na vida... Quanto a trocas de galhardetes, a tradução pública resume-se a um acontecimento: em 1994, Marianne fez incluir na sua coletânea Faithfull: A Collection of Her Best Recordings uma versão de Ghost Dance, escrita por Smith e Lenny Kaye para o álbum Easter (1978).

Tanto a inglesa como a americana perderam pessoas próximas: Faithfull presenciou o suicídio de um namorado, Howard Tose, em meados da década de 1980. Em 1994, Patti assistiu à morte do marido (e pai dos seus filhos, Jackson e Jesse), vitimado por um ataque cardíaco. Também podem apresentar, como dado comum, uma certa tendência para as quedas: em 1977, Smith caiu de um palco em Tampa, Florida, e partiu algumas vértebras, daí resultando meses de imobilização e de fisioterapia. O acidente de Faithfull foi caseiro, e parece ter sido motivado pelo uso de estupefacientes: caiu de uma escada e partiu um maxilar.

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Há muito mais a garantir-lhes lugares de pleno direito entre as grandes sobreviventes. Desde logo, a capacidade de se reinventarem - Marianne Faithfull recuperou a sua condição de atriz (iniciada nos anos dourados) com alguns filmes de enorme valia, como Paris, Je T"Aime, Marie Antoinette (de Sofia Coppola) e, sobretudo, Irina Palm, em que faz o papel de uma avó que se torna "trabalhadora do sexo" para conseguir o dinheiro indispensável aos tratamentos médicos do neto. Foi, por esse desempenho, nomeada para o prémio de melhor atriz dos European Film Awards. Patti especializou-se em sessões de leitura - como a realizada em Portugal, em 2015, na Casa Fernando Pessoa. Some-se, já agora, o ativismo que cada uma interpreta à sua maneira, mas que continuam a praticar com convicção. Há, aliás, mais um dado que as aproxima e que merece o sublinhado: em 1979, para o sempre elogiado Broken English, Marianne Evelyn Gabriel Faithfull foi ao reportório de John Lennon buscar o lapidar Working Class Hero. Em 1988, de volta à ação discográfica, Patricia Lee Smith criou um hino sem fim: People Have the Power. Felizmente, as lutas continuam.

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