Maria Luísa Guerra
A atribuição da comenda da Instrução Pública a Maria Luísa Guerra pelo Presidente da República constituiu uma homenagem e um reconhecimento que merecem atenção. A homenagem à educadora enaltece a importância da Arte de formar as novas gerações. Sendo a Educação uma prioridade fundamental numa sociedade que se deseja civilizada, o exemplo dos professores é essencial como marca de exigência e de rumo no sentido da qualidade e da cidadania. Não há desenvolvimento humano sem a referência e a dignificação dos professores, num trabalho incessante visando uma aprendizagem capaz de aliar o saber, o saber fazer, a relação e o respeito dos outros e a compreensão do ser. O reconhecimento do percurso excecional da mestra significa que a sociedade não pode ser indiferente relativamente a quantos se singularizam pelo facto de persistirem na procura de caminhos novos capazes de abrir horizontes, de correr riscos no sentido de melhorar a sociedade e a vida.
Professora de Filosofia e História Maria Luísa Guerra sempre teve a paixão da escola. Foi minha professora no Liceu de Pedro Nunes. E tornámo-nos amigos ao longo de décadas e a proximidade foi reveladora de que o verdadeiro educador é-o na vida toda. Ainda agora na nona década da existência mantém uma curiosidade insaciável e continua a trilhar caminhos novos. É impressionante a vitalidade intelectual. Autora de livros didáticos fundamentais, sempre afirmou que "não há livro que possa realizar-se sem a experiência viva e dinamizadora do mestre". A sua obra de reflexão é notável. Seguindo os melhores caminhos das experiências internacionais, a maiêutica era o seu método preferido. Permanentemente, éramos levados a privilegiar as perguntas. E a sua obra era a ilustração permanente do facto de a escola ter de estar ligada à vida, como nos ensinou John Dewey. A jovem professora era apaixonada de Fernando Pessoa e ia partilhando connosco as descobertas que ia fazendo, num tempo em que pouco ainda se conhecia de uma obra que o tempo veio a tornar crucial - sobretudo depois da descoberta do Livro do Desassossego e dos mistérios de uma arca inesgotável. Quando tomávamos contacto com textos como Sobre o Conceito de Opacidade na Poesia de Alberto Caeiro, ou Significado Existencial da Ode Marítima, e ainda com O Tempo na Poesia de Álvaro de Campos, apercebíamo-nos de que algo de especial estava nas preocupações da nossa professora.
Um dia, entrou na sala de aula e apenas nos disse: "Reparem, a essência da existência é a própria existência." E não mais deixámos de procurar seguir tal pista, quando deixava de haver fronteiras entre matérias, entre disciplinas ou entre tempos... Depois, convidou para estar connosco alguém que desconhecíamos ainda, vindo da longínqua Dinamarca, a mesma de Hamlet e Elsinore: "Kierkegaard ou a Paixão do indivíduo" e depois veio outro: "Unamuno - D. Quixote da Imortalidade" ou o "Filósofo da compaixão". E as fronteiras eram amplas, em constante alargamento - Simone de Beauvoir, Sartre, Camus, mas também Heidegger, até ao Sermão de Benares. E a Arte dialogava com a Ciência - ouvindo Max Planck - "No universo sem limite do pensamento, a natureza não ocupa senão um estreito distrito". Contra as certezas, funcionava a magia da contradição. E as janelas abriam-se à luz e ao ar puro. Quando nos deparávamos com o precioso volume Textos de Filosofia, precioso vademécum, estava bem presente o gosto e o cuidado de José Guerra, irmão de Maria Luísa, referência inesquecível, amante de todas as artes, até à melhor Banda Desenhada. Outro dia, em vez de complexos raciocínios mostrou-nos como uma jarra de flores com alguns troncos nus, poderia representar o pensamento do mundo. Havia sempre espaço para novos motivos de atenção ou de cuidado. E, como disse Gabriel Marcel: "É próprio dos problemas detalharem-se. O mistério, pelo contrário, é o que não se detalha." Ah! Como está vivo esse amor do diverso e do contraditório!...
Administrador-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian