Maria Lúcia Dal Farra: "São cartas de um escritor-pensador excecional"
Quando e como conheceu Herberto Helder?
Eu me encontrava em Lisboa no final de setembro de 1972 pesquisando para o meu mestrado, quando fui me encontrar com o Carlos de Oliveira [escritor luso-brasileiro, 1921-1981] no Monumental. O Carlos estava entretido ouvindo um rapaz sentado a seu lado. Também fiquei embevecida com a história que contava tão animadamente porque me parecia familiar aquele estilo que fui reconhecendo como muito próximo ao de Retrato em Movimento - que eu lera ainda no Brasil. Por isso, fiz em seguida essa observação e quase o ia acusando de plágio quando o Carlos me elucidou que se tratava do autor do livro. Isso nos deixou muito à vontade e, parece, para ganharmos confiança mútua.
Por que acha que ele a escolheu para se tornar uma espécie de sua confidente intelectual?
Herberto não me escolheu. Como eu resolvera dedicar-me à obra dele no meu doutoramento, passei a escrever-lhe quando regressei ao Brasil, solicitando uma coisa e outra, o que ensejou inúmeros assuntos atinentes à sua obra e à sua maneira de pensar.
Disse que não mostrou as cartas nem ao seu marido: sentia necessidade de manter até ao limite a reclusão tão típica de Herberto?
Não se trata disso, mas de uma questão de foro íntimo. Quando digo que não as mostrei nem ao meu marido é apenas uma maneira de afirmar o quanto elas sempre foram preservadas segundo os códigos da amizade. Todas as cartas, até prova em contrário, obedecem a um ritual de discrição e, em princípio, não interessam a ninguém que não seja às pessoas envolvidas. Tenho, do mesmo modo, vasta correspondência com Vergílio Ferreira, à qual também nunca ninguém teve acesso, e que foi depositada agora nos reservados da Biblioteca da Universidade de Évora, no mesmo momento em que depositei as 52 cartas trocadas com Herberto nos reservados da Universidade da Madeira.
Decidiu torná-las públicas porquê? Para quem o quiser estudar?
Elas foram endereçadas aos reservados do Centro de Estudos Internacionais Herberto Helder da Universidade da Madeira, o que não quer dizer que se tornaram públicas. Há regras estabelecidas que vigoram no que concerne a espólios desse tipo, muito embora não haja nelas nada que destoe da índole intelectual que mantém. Eu só busquei encontrar um lugar seguro e respeitável para guardá-las. O Herberto era uma das pessoas mais discretas que tive a honra de conhecer e a correspondência gira em torno do seu trabalho, daquilo que dizia respeito à sua escrita, aos contextos literário e político. São redigidas por um homem íntegro, amável e generoso, de invejável humor - por um escritor-pensador excecional.
Há quem defenda que Herberto foi o maior poeta português pós-Pessoa. Concorda?
Ele fundou uma gramática e uma linguagem únicas. Admiro imenso o teor do seu lirismo e o prosaísmo contundente que ele veio a revitalizar no final da sua escrita.
Ele leu o seu Alquimia da Linguagem, sobre a obra dele?
Claro que sim, leu e por vezes não gostou nem um pouco.
O que mais admirava na poesia de Herberto?
A sua obra me atraiu de imediato quando tomei contacto com ela. Tenho total estima e assombro por ela. E a cada releitura me cativa e surpreende mais.
Ele influenciou a sua poesia?
Creio que sim e não há outro modo, visto que a aprecio muitíssimo. Além do mais, não pretendo perder essa convivência. A obra de Herberto faz parte do meu repertório e da minha vida, é uma das minhas referências mais eloquentes.
No Brasil, não foi muito editado - até agora. A que se deveu?
Houve uma tentativa de publicar a sua obra no Brasil, em 1986. Um esforço da Editora Epopeia que, embora tivesse contado com o entusiasmo do Herberto (que me pedira para auxiliá-lo na escolha das peças e enviado um texto então inédito para publicação), infelizmente não frutificou: a editora fechou. Apenas em 2000 é que Herberto foi, pela primeira vez, editado no Brasil, e pela Iluminuras do Samuel Leon, com prefácio de Jorge Henrique Bastos e posfácio meu. Tratava-se de O corpo, o Luxo, a Obra.
Faltaria público, interesse?
Não sei se há no meu país um público tão numeroso de poesia quanto em Portugal. Mesmo o [Fernando] Pessoa, publicado há tanto tempo aqui, só agora parece ser de facto conhecido de leitores não especializados. Tivemos, aliás, o boom do romance português contemporâneo na última década, mas hoje em dia o movimento editorial está (nesta nossa triste republiqueta de banana) quase a pique.