Maria João e Egberto Gismonti vão miscigenar música juntos

O músico brasileiro e a cantora portuguesa juntam-se pela segunda vez nas suas vidas em palco hoje no CCB e, na quarta-feira, na Casa da Música. Dali seguem Europa fora
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Entre as respostas que enviou ao DN por escrito, Egberto Gismonti lançou a pergunta: "Como resistir à beleza inenarrável da interpretação de Maria João & Mário Laginha para a música Beatriz do Edu Lobo e do Chico Buarque?" E depois acrescentava: "Certas interpretações são definitivamente a justificativa da existência da música como expressão da alma." O músico brasileiro junta-se hoje à cantora portuguesa Maria João em palco pela segunda vez nas suas vidas: a primeira aconteceu no Festival de Jazz de Ravello, em Itália, no ano passado, e já então eram amigos. Agora começam no Centro Cultural de Belém, de onde seguem, na quarta-feira, para a Casa da Música, no Porto, e dali Europa fora.

"Vi o Egberto na primeira vez em que fui a Berlim, num festival de jazz em que ele era a megaestrela, e eu ia lá humildemente tocar no mesmo dia que ele com um contrabaixista alemão. Foi em 1985, 86. Ele ocupou o espaço todo com o ensaio de som - ainda no outro dia lhe contei isto - e eu fui lá, toda irritada, mão na anca: "Olhe, desculpe, mas nós também precisamos de fazer um ensaio de som. Importa-se de nos dar algum espaço? Lembro-me de ele estar no palco e olhar assim para mim, com os olhos muito abertos, arregalados, um sorriso, e dizer: "Mas que maravilha, que beleza..." E foi assim que nós nos conhecemos. Claro que acabámos por não conseguir fazer ensaio de som nenhum, porque ele ocupou o espaço todo, mas depois fomos todos jantar e foi também amor à primeira vista. Passámos muitos anos sem nos vermos, mas sentimos muito afeto um pelo outro, e ele lembra-se de quando eu estava à espera do meu filho. Eu não me lembro de o ter visto nessa altura, mas ele lembra-se de mim com uma pançona enorme à espera do João."

Gismonti, o multi-instrumentista que tocou com o contrabaixista americano Charlie Haden e com o saxofonista norueguês Jan Garbarek, ou com o seu conterrâneo e percussionista Naná Vasconcelos, conta que nestes concertos, ao lado da voz de Maria João, tocará "piano e violão com certeza, flautas diversas, provavelmente". Ela adianta que o reportório será "inteiramente dedicado à música de Egberto".

Prestes a tornar-se septuagenário, Gismonti conta que conheceu a música da cantora "antes de conhecê-la pessoalmente. As viagens, tournées nas décadas de 1970 e 80 possibilitava (durante os festivais de verão) que tivéssemos a chance de escutar, ver e conhecer pessoas que não conhecíamos. O que me lembro claramente é de tê-la ouvido agradecendo após cada música, e, mais uma vez, utilizando algumas palavras em português tornando as frases mais simpáticas e engraçadas". E as primeiras impressões que teve ao ouvi-la cantar, ainda as guarda? "Claro, as primeiras impressões foram de surpresa já que não era comum ouvir uma cantora portuguesa produzindo música fora dos conceitos e das formas portuguesas (cante alentejano, fado, música pimba, etc.). No início me parecia que Maria João era uma cantora voltada para o jazz norte-americano. Com o passar dos tempos, pude escutá-la com mais atenção e cuidado."

Ela, a mulher que canta como quem dança, ou vice-versa e até tudo ao mesmo tempo, é filha de pai português e mãe moçambicana. Ele, que no ano passado, no palco do festival MIMO, em Amarante, chamava ao seu nome " uma encrenca danada", é filho de pai libanês e mãe italiana. "O comentário "encrenca danada" dizia respeito às dificuldades que o nome árabe causou em minhas dezenas de passagens por alfândegas europeias nos anos 1970 e 80. Em muitos países me faziam perguntas próximas a desconfiança de estarem falando com um terrorista... Isso já passou, digo, mudou. Agora existem outras discriminações a serem banidas. As raízes libanesas e italianas me fizeram tocar dois instrumentos que não casam com facilidade, violão e piano (violão/serenata para minha mãe, piano/aristocracia para meu pai), e ter muito pouca discriminação musical desde o início da minha vida profissional - hoje eu diria que já não sei mais o que isso poderia significar", explica o músico brasileiro.

Egberto e Maria João encontram-se, assim, na consciência de que o músico nascido em Carmo, Rio de Janeiro, diz ter em relação aos seus pais (e não era preciso saber das suas raízes para o notar): eles "fazem parte viva da cultura que representamos: miscigenada", afirma. É, aliás, um bom adjetivo para a música dos dois.

O público português habituou--se a ouvir Maria João ao lado do piano de Mário Laginha durante cerca de duas décadas e, mais recentemente, ao lado do seu OGRE, composto por Júlio Resende no piano, Joel Silva na bateria, André Nascimento na eletrónica, e João Farinha nos sintetizadores. Contudo, a sua voz também foi escutada por muitos ao lado da voz de Bobby McFerrin ou de Gilberto Gil, e, num dos momentos mais marcantes da sua carreira, ao lado do piano da japonesa Aki Takase.

A cantora de 61 anos lançou agora o álbum A Poesia de Aldir Blanc, onde dá voz a alguns dos mais icónicos poemas do autor carioca, como O Bêbado e a Equilibrista ou Dois para Cá, Dois para Lá. "Em que fase estou agora com a música? Completo apaixonamento. Paixão mesmo. É que nunca foi amor só. Acho que vai durar até eu morrer. Quando eu morrer, será o meu último suspiro de apaixonamento pela música." Já Egberto diz que a música lhe dá "consciência de que a vida valeu e valerá a pena ser vivida, sempre." De Portugal, os dois partem para o frio: Alemanha, Áustria e Hungria.

Maria João e Egberto Gismonti. Hoje às 21.00 no CCB, em Lisboa. Bilhetes entre 15 e 40 euros

Quarta-feira na Casa da Música, Porto, às 21.30. Bilhetes a 35 euros

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