Maria Amélia Ferreira: "Pais já perguntam se o filho terá emprego como médico"
A Faculdade de Medicina da Universidade do Porto celebra amanhã o seu dia e comemora os 192 anos, com uma sessão em que será orador Adriano Moreira e convidado de honra o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Maria Amélia Ferreira é a primeira mulher a dirigir a faculdade, numa época em que a profissão, em que as mulheres estão em maioria, vive mudanças importantes, com o número de médicos formados a poder já exceder a procura nacional.
A Faculdade de Medicina do Porto faz 192 anos. Qual é o estado de saúde?
Esta faculdade tem um estado de saúde muito sustentável. Tem uma história e uma cultura de qualidade nas suas principais missões: educação, investigação e assistência. Ao longo destes 192 anos foi criando uma estrutura em redor dessas três missões que lhe permite situar-se hoje na liderança da formação médica, da investigação em saúde. E também na transferência deste conhecimento em valor de mercado, o que nos permite criar essa sustentabilidade. A faculdade recebe um orçamento do Estado [dez milhões de euros] que contribui para 55% das despesas, o restante é proveniente de projetos de investigação, de prestação de serviços de saúde e de propinas que advêm de cursos oferecidos pela faculdade. É um montante muito significativo que depende das nossas pessoas.
A missão da faculdade é mais do que formar médicos?
A principal missão é formar médicos. Essa é a missão primordial. Formar médicos tecnicamente competentes e humanamente orientados para as populações. Para se ter uma boa formação de médicos, temos de ter uma investigação científica muito bem adequada, até para pôr os médicos a pensar cientificamente. Neste momento está formalizado um centro académico clínico, o Centro Universitário de Medicina, que permite criar um ambiente desde o início do curso para a formação de médicos com tecnologias cada vez mais diferenciadas mas sempre com a preocupação da vertente humanística.
Além do Hospital de São João, a faculdade está ligada a mais unidades?
Temos um hospital nuclear, o São João, e, decorrendo do nosso número de estudantes e da necessidade de que os futuros médicos conheçam outros contextos, nos últimos anos a FMUP tem tido a preocupação de ter estruturas afiliadas, neste momento são mais de 30, entre hospitais (IPO, Gaia, Bragança, Madeira) e centros de saúde. Temos protocolos com 33 estruturas de IPSS e da área da saúde. Outro aspeto é a articulação com a medicina privada. E estamos a abrir às áreas dos cuidados continuados e da estrutura do envelhecimento.
O número de estudantes admitidos está acima das capacidades da FMUP?
Sim, o nosso numerus clausus ideal é 190. Formar médicos exige recursos materiais e humanos, e as capacidades formativas são muito exigentes. E depois é a continuidade após os seis anos de ensino. Nos dois últimos anos já há mais de 200 médicos que não tiveram acesso à especialidade. Cria um elenco de gente cuja formação ficou muito cara e que é muito boa, em qualquer lado do mundo. Vê-se por indicadores de emigração.
Quantos estudantes recebem?
O nosso numerus clausus é 245. Mas recebemos mais 15% de um contingente de licenciados e de protocolos com a CPLP e outros. Temos à volta de 300 novos estudantes todos os anos. Além de termos quase igual número de estudantes em pós-graduação e doutoramentos. Neste momento temos perto de 1800 estudantes para serem formados médicos, nos seis anos do curso, e 1700 de outros cursos em mestrados e doutoramentos.
Na vertente do ensino é fácil conseguir ter médicos?
Temos o privilégio nesta faculdade de ter um contingente muito significativo de médicos. É muito importante captar os clínicos de qualidade porque funcionam como modelos. Não é fácil porque cada vez mais os médicos têm compromissos com as carreiras profissionais. É muito exigente a prestação de serviços nos hospitais, o que tem feito crescer o número de não médicos que ensinam o curso de Medicina. Vêm da farmácia, da bioquímica, da nutrição. Ajuda o curso a implementar as áreas de investigação.
Estamos a formar médicos a mais?
Portugal tem os médicos com uma distribuição anómala. Se fosse adequada, não haveria falta no Interior. Faltam incentivos para ir para fora do Litoral. O primeiro estudo sobre o número de médicos foi feito em 1999 pelo professor Alberto Amaral, era ele reitor da UP, e a projeção era que em 2016 começaria a haver excesso de médicos em Portugal. E isso verifica-se já. É um problema político.
Há muitos alunos da FMUP que emigraram?
Muitos. Temos estudantes nossos que já estão a fazer a especialidade na Europa. Há países com falta de médicos, no Norte da Europa, na Alemanha, na Suíça. Todos os anos são dezenas que já fazem especialidade fora do SNS. Já temos turmas de alemão a partir do quarto ano porque os estudantes precisam de ir fazer especialidade à Alemanha.
A FMUP é muito exigente, com a média de acesso mais elevada?
Isso decorre da qualidade que é reconhecida à FMUP, ao nível do curso, o que nos dá responsabilidade acrescida.
Como está a fusão com a Faculdade de Medicina Dentária?
Temos aqui no Porto a maior concentração de gente a trabalhar em saúde e corresponde a uma visão de otimização dos recursos - criar estruturas com uma massa crítica mais significativa. Neste momento, o processo já foi aprovado pelo senado da universidade. No conselho geral era preciso a maioria absoluta e não teve. Mas está ainda em discussão e o processo está em curso, no qual as duas faculdade se reveem, com o apoio da reitoria e do Ministério do Ensino Superior. Vai ocorrer, estou certa, o que falta é ver a forma como a fusão será feita, o que é complexo.
É a primeira mulher em 192 anos a dirigir a faculdade. Já houve discussão por causa da feminização da profissão.
Ainda temos uma percentagem mais significativa de mulheres a frequentar o curso de Medicina. Tem reduzido. Houve um ano que foi quase 70% de raparigas. Agora andamos à volta de 60%. Hoje temos especialidades como urologia ou ortopedia, que nunca eram escolhidas, com mulheres. O que ocorre é que nos lugares de poder encontra poucas mulheres. Isso mantém-se e não tem sido fácil de ultrapassar.
Ainda é atrativo ser médico?
Em termos financeiros, já não é. Em termos sociais, sim. Juntamos sempre os pais dos alunos no início do curso e agora tenho pais a perguntar se eu estou a dizer que o filho não vai ter emprego como médico. E eu digo que estou. Isso não acontecia mas agora pode acontecer. O curso exige muito tempo e o salário já não é o melhor. É isso que faz que exista falta de médicos nos países nórdicos, porque os jovens não iam para Medicina - são seis anos e mais quatro anos de especialidade. A medicina é muito exigente, demora muitos anos e tem muita responsabilidade.
Sendo a primeira mulher no cargo, o que mudou com isso na FMUP?
O que acrescenta uma mulher na direção de uma faculdade é uma visão muito mais humanista. Nós mulheres conseguimos fazer uma gestão muito mais global e abordar os problemas de uma forma mais humanizada. No meu caso, não senti muita diferença. Há 40 anos que ensino nesta faculdade e estive sempre muito envolvida.