Março. O mês de todas as manifestações no Brasil
A sessão da última terça-feira da Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul foi abruptamente suspensa. Cerca de 30 mulheres entraram aos gritos de "machistas, fascistas não passarão" numa manifestação batizada de "Calcinhaço [aludindo ao termo "calcinha", roupa interior feminina] da Democracia". As manifestantes, que penduraram calcinhas num enorme varal na câmara, protestavam contra declarações consideradas misóginas de um deputado estadual de credo evangélico e pelo facto do estado ser o único sem uma única deputada mulher. Não sendo o mais participado dos atos, o "Calcinhaço da Democracia", no entanto, abriu as hostilidades de março de 2020, o mês de todas as manifestações.
Já este domingo, a propósito do Dia Internacional da Mulher, há protestos previstos nas principais cidades do país. A 14, quando se assinalam dois anos da morte da vereadora Marielle Franco, novos atos. No dia seguinte, a manifestação a favor do governo Bolsonaro, marcado, entre outros, pelo próprio presidente da República, e contra o Congresso Nacional. E, dia 18, nova manifestação da oposição com a educação como mote.
No Dia Internacional da Mulher, movimentos feministas já planeavam atos pela defesa dos direitos das mulheres e contra o atual governo, sob o título "Mulheres contra Bolsonaro", e com questões como garantias laborais, direitos reprodutivos, violência contra as mulheres, defesa da democracia e política ambiental na agenda. Mas, dado o acirramento político no país e a perspetiva da manifestação pró-governo de dia 15, ao "Movimento Mulheres em Luta" e "Marcha Mundial das Mulheres" juntaram-se outras entidades.
Na terça-feira passada, na Câmara dos Deputados, reuniram-se com as lideranças dos movimentos feministas a Ordem dos Advogados do Brasil, cujo líder Felipe Santa Cruz viu a memória do seu pai, vítima da ditadura militar, ser atacada pelo presidente da República, a Associação Brasileira de Imprensa, uma vez que à exceção de emissoras de televisão alinhadas como o Planalto, como Record, SBT ou Rede Viva, a maioria dos órgãos de comunicação social tem relação tensa com o líder do executivo, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, organização católica, o Movimento Sem Terra e a União Nacional dos Estudantes, a UNE, entre outros organismos.
"Foi um encontro além da oposição que conseguiu reunir entidades da sociedade civil para organizar um núcleo, um movimento permanente de monitoramento e combate a qualquer tipo de ação antidemocrática", disse Iago Montalvão, presidente da UNE, ao jornal Congresso em Foco.
No dia 14, véspera da manifestação pró-governo, o Rio de Janeiro é palco pelo segundo ano do "Dia Marielle Franco, dia de luta contra o genocídio da mulher negra". Convocados pelo PSOL, o partido da vereadora assassinada em 2018, e de outros partidos de esquerda, como o PT e o PC do B, os atos anunciam-se como luta contra a "escalada autoritária da extrema-direita" e a favor da ordem democrática.
Marielle e o motorista Anderson Gomes foram executados, segundo as autoridades, por Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, dois ex-polícias com ligações à milícia [máfia do Rio de Janeiro] Escritório do Crime, liderada por Adriano Nóbrega, um outro ex-agente morto em circunstâncias suspeitas no mês passado após troca de tiros com a polícia. Se aquelas detenções respondem à pergunta "quem matou Marielle e Anderson", falta ainda apurar "quem mandou matar Marielle e Anderson". O facto de Lessa ser vizinho de condomínio de Bolsonaro, de Queiroz ser seu apoiante declarado e de Nóbrega ter sido homenageado pelo próprio presidente da República e familiares seus terem feito parte do gabinete do seu filho Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro levantam especulações incómodas - e nada mais do que isso, por enquanto - para o governo.
Governo que terá ato a seu favor no dia seguinte, 15, organizado por grupos como o Nas Ruas, o Movimento Avança Brasil, o Movimento Brasil Conservador e o Direita Brasil. Marcada inicialmente para janeiro, com o intuito de exigir a prisão logo na condenação em segunda instância e não apenas após trânsito em julgado - entendimento que levou à soltura de Lula da Silva, antigo presidente e líder da esquerda brasileira, entre outros -, a manifestação sofreu uma correção de trajetória nas últimas semanas.
Um braço-de-ferro entre o poderes executivo e legislativo a propósito da gestão orçamental fez Augusto Heleno, ministro do gabinete de segurança institucional, desabafar que "o governo não poderia aceitar chantagens, foda-se" - uma controversa declaração gravada pela própria assessoria de comunicação do Planalto.
Estava dado um novo mote para as manifestações: contra o parlamentarismo, ou seja o poder considerado excessivo do Congresso Nacional, e a favor do presidencialismo, o sistema político em vigor no Brasil, isto é o presidente da República. A manifestação, entretanto, ganhou repercussão depois de o próprio Bolsonaro partilhar vídeos em grupos de Whatsapp a convocá-la, o que pode ser considerado falta de decoro e, por consequência, motivo para impeachment, como sublinhou ao DN o advogado Miguel Reale Jr., subscritor da peça jurídica que gerou o impedimento de Dilma Rousseff, em 2016.
Entretanto, um entendimento ao longo desta semana entre Congresso e Planalto pode ter pacificado a relação entre os dois poderes e esvaziado o teor da manifestação de dia 15. Grosso modo, o legislativo pretendia decidir onde investir cerca de 30 mil milhões de reais do orçamento; o governo queria dividi-los ao meio; após reuniões e votações, decidiu-se que dois terços ficam na mão do Congresso e um terço com o Planalto.
"O placar de 398 a 2 demonstrou que o Executivo e o Legislativo estão em sintonia para desenvolver o Brasil", resumiu Luiz Eduardo Ramos, ministro de Bolsonaro encarregado das negociações, no Twitter, referindo-se à votação na Câmara dos Deputados a favor da nova divisão de verbas.
Três dias depois da manifestação pró-governo, a 18 de março realiza-se novo protesto contra a política económica de Bolsonaro e do seu ministro do setor, Paulo Guedes, e em defesa da educação e dos serviços públicos.
Bandeiras como "ditadura nunca mais", a defesa dos movimentos sociais e da liberdade de imprensa devem também estar na pauta da UNE, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, das principais centrais sindicais e de partidos de esquerda como PT, PSOL e PC do B. No entanto, não deverá ser pronunciada a palavra "impeachment", por ser considerado ainda prematura.
Março de 2020, com quatro manifestações em perspetiva, além do pontapé inicial do "Calcinhaço da Democracia", pode juntar-se a outros períodos de protestos decisivos desta década.
Em junho de 2013, atos contrários ao aumento do transporte público em São Paulo espalharam-se pelo país com uma agenda de reivindicações difusa.
Em março de 2015, manifestações populares ajudaram à derrocada do Governo Dilma e consequente ascensão do vice-presidente Michel Temer ao poder, reforçadas no mesmo mês do ano seguinte, quando já se votava o impeachment da então presidente.
E em abril de 2017 foi a vez de a esquerda parar o país com protestos e greve geral contra a reforma laboral de Temer.