Marcelo e Costa em versão Rui Veloso

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A situação de instabilidade institucional em que o país se encontra tem levado a várias comparações. Desde a referência a rounds, balões, meteorologia e culinária, a tudo temos assistido um pouco numa demonstração de imaginação, mas também de gravidade face à situação vivida. Eu lembrei-me de um dos grandes nomes da música portuguesa, Rui Veloso, e da sua Paixão e anel de rubi.

De facto, durante muito tempo vivemos uma relação entre São Bento e Belém dominada pela ideia geral de ser "aquela que eu mais queria, para me dar algum conforto e companhia". Muitos que à direita pretendiam um Presidente oposição ao governo, vociferavam contra aquilo que à esquerda foi entendido como um modelo de relacionamento entre órgãos de soberania, e resultou numa enorme maioria de apoio na reeleição presidencial, seguida de uma maioria absoluta do PS no parlamento.

Depois, por muito que se tenha aparentemente empenhado "o anel de rubi para ir ao concerto no Rivoli", António Costa foi interrompendo a relação e começou nova fase. O Presidente até pode ter tentado ser discreto na cobrança da execução do PRR ou na gestão de outros temas políticos centrais, mas não conteve o enchimento de um balão em que todos falavam de demissão do governo ou dissolução da Assembleia. Perante isso, já impaciente, o primeiro-ministro não cedeu um milímetro.

Sobre essa matéria sejamos claros, desde 1982 nunca se aplicou o artigo da Constituição que permite ao Presidente da República demitir o governo invocando a necessidade de assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, nem uma maioria monopartidária foi alvo de interrupção do mandato parlamentar por via de dissolução da Assembleia. O facto de esses temas se terem tornado conversa pública, só teve como consequência uma espécie de dependência dessas decisões dos resultados das sondagens e aceitação de que a oposição agora deve assumir uma nova vida.

Neste mundo ao contrário, em que as sondagens passaram a ser tema vital, quase passou despercebido o facto de estarmos perante uma situação que não escandalizaria ninguém se enquadrada no irregular funcionamento institucional. Secretários de Estado por um dia, remodelações forçadas em série, reuniões entre governo e setor empresarial do Estado com agenda de reuniões parlamentares, bicicletas a voar (não, não são os aviões), assessores fechados na casa de banho, desrespeito público pelas posições do Presidente da República são elementos que chegam e sobram. Mas perante isso, o máximo que o Presidente consegue é fazer um discurso certeiro, mas de eficácia muito reduzida.

Sabemos agora ainda mais que a situação é politicamente irrespirável e o Presidente vai, de forma eficaz, tirar espaço de oposição (no que, felizmente, será mau sinal para André Ventura), mas que António Costa tem a chave bem segura na mão. Depois de Durão Barroso ter assumido que seria primeiro-ministro só não sabendo quando (colocando-se nas mãos da sorte), António Costa pode dizer que sairá, mas quando quiser (em autodependência).

Mas como "contigo aprendi uma grande lição, não se ama alguém que não ouve a mesma canção", falta a terceira parte. De um lado, a relação dos dois políticos mais cenaristas da Democracia, que acham que mantêm os seus poderes, vai caminhar num crescente conflito. Do outro, a direita que com PSD, IL e CDS vai ter de fazer pela vida construir um programa comum e gerar alternativa programática viável e politicamente confiável. "The show must go on."


Professor Universitário, advogado

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