Marcelo e a Constituição

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1 A Constituição tem estado na moda. Esteve na moda quando na anterior legislatura se aprovaram leis obviamente inconstitucionais. Esteve na moda quando o Tribunal Constitucional as invalidou.

Continuou a estar na moda quando foi referida como o obstáculo a certa solução governativa. Esteve na moda como motivo para se fazer a sua revisão pontual a fim de se resolver essa pretensa crise constitucional.

Num Estado de direito democrático, a Constituição "deve estar sempre na moda", mas pelos bons motivos. Não para ser substituída ou desvirtuada, antes para ser cumprida e modificada naquilo em que não esteja adequada à realidade constitucional, através dos procedimentos legítimos que ela própria estabelece.

2 Com as presidenciais na reta final, a Constituição continua a estar na moda. Agora, um dos candidatos até coloca como lema da sua campanha "Cumprir a Constituição".

Este é um "mau motivo" porque "é chover no molhado" que ao Presidente da República se peça o óbvio, que é cumprir a Constituição. De resto, é isso que o Chefe do Estado jura no momento em que toma posse.

Sendo óbvio, a invocação da necessidade de cumprir a Constituição ganha um sentido performativo: de se dizer que os outros não cumprem a Constituição e de que se é portador da única chave que abre o cofre da interpretação constitucional.

Não deixa de ser curioso verificar que, em Portugal, é o partido desse candidato que mais vezes fala da Constituição. Qual a razão? Ter sido o partido que mais vezes perdeu o debate constitucional, para o qual a anterior versão da Constituição - e já lá vão sete revisões constitucionais! - era sempre a melhor.

3 As eleições presidenciais são um momento crucial para a efetividade da Constituição: não porque o Presidente da República intervenha com autonomia, já que não pode sequer vetar a lei de revisão constitucional; mas porque os seus poderes constitucionais são aqueles que, no articulado constitucional, se apresentam de um modo mais difuso, implícito e até informal, comparativamente aos dos outros órgãos de soberania, e a sua modelação concreta em muito dependendo do respetivo exercício.

Daí ser determinante a personalidade que irá ocupar tal lugar, sendo certo que a herança de Cavaco Silva é "pesada" no sentido da desfiguração do papel constitucional do Presidente da República, que foi reconduzido a uma intervenção de tipo parlamentar num sistema de governo que é semipresidencial. Foi como ir para a guerra com uma pistola de plástico...

Marcelo Rebelo de Sousa tem toda a vantagem e utilidade nesse desempenho. Foi um brilhante deputado constituinte e foi agente, político e académico, em diversas revisões constitucionais. Além de excelente professor, dos candidatos apresentados, é aquele que melhor transporta a memória da identidade constitucional, desde aquilo que o poder constituinte quis dizer em 1975-1976 até aquilo que hoje se percebe ser, em novos ambientes, a função constitucional.

De todos eles, é a Marcelo Rebelo de Sousa que cabe o verdadeiro papel de "cumprir a Constituição" ao conseguir ver o que é a "Constituição de hoje", e não vendo a "Constituição de ontem", que porventura já existiu mas que não existe mais.

4 Não se pode absolutizar a tarefa da interpretação constitucional, sobretudo no sentido de quem se arroga de ser o "dono da Constituição", como ainda fazem alguns deputados constituintes ou como faz, às vezes, o Tribunal Constitucional.

A Constituição, por definição sendo a lei fundamental do país, está aberta à comunidade dos cidadãos e todos os cidadãos, num certo sentido, são constitucionalistas.

Fazendo um paralelo entre a função de interpretar a Constituição e a exegese bíblica, o "constitucionalista" de hoje não pode ser o "fariseu" (e o doutor da lei) do Antigo Testamento: ver a Constituição literal, e acima de tudo ver na Constituição aquilo que ele próprio, subjetivamente, gostaria que ela contivesse...

O pior que poderia acontecer nestas eleições presidenciais seria a eleição para o Palácio de Belém de um "fariseu" e não de um "constitucionalista": Marcelo Rebelo de Sousa dá todas as garantias de alguém que sabe ler na Constituição aquilo que ela diz hoje, num período muito intenso que Portugal vai atravessar e em que a função presidencial desempenhará um decisivo papel, principalmente pelos poderes não escritos de que dispõe.

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