O homem que arquitetou a crise política em Itália perdeu para já a batalha. Matteo Salvini, o líder da Liga, partido de extrema-direita `a frente nas sondagens, decretara o fim da coligação populista com o Movimento 5 Estrelas (M5E) ao anunciar uma moção de censura no dia 8. Mas a jogada não parece, para já, dar frutos. O primeiro-ministro Giuseppe Conte apresentou a demissão ao presidente Sergio Mattarella, mas antes rasgou em pedaços o caráter de Salvini. Este recuou e retirou a moção de censura, mas as pontes entre nacionalistas e antissistema parecem ter ruído. O cenário de um novo executivo dirigido pelo jurista e professor universitário, agora com a participação do Partido Democrático, é o mais desejado..Essa hipótese é também a mais popular, segundo a média das sondagens de 14 meios de comunicação: 36% dos eleitores italianos querem um novo executivo que junte os dois partidos mais votados em março de 2018, Movimento 5 Estrelas e Partido Democrático. A chamada dos eleitores às urnas é a solução preferida para 22%, a renovação da coligação M5E-Liga recolhe 13% de respostas e a chamada coligação Ursula tem 12%..Esta última solução foi apresentada pelo ex-presidente da Comissão Europeia Romano Prodi e junta o seu Partido Democrático aos rivais aparentemente inconciliáveis de hoje e do passado, o movimento fundado por Beppe Grillo, e a Força Itália, de Silvio Berlusconi. Numa coluna de opinião no Il Messaggero, o também ex-governante italiano defendeu uma coligação inspirada nas coligações de governo alemãs, mas sobretudo pró-europeia, pelo que a batizou de Ursula, o nome próprio da nova presidente da Comissão. "É evidente que o acordo deve, antes de mais, basear-se na reintegração de Itália como membro ativo da União Europeia", um "gesto com um significado político preciso"..O chefe de Estado começa as consultas nesta quarta-feira à tarde, e prossegue na quinta as consultas com os presidentes do Senado e do Parlamento e depois com os representantes dos grupos parlamentares, na sequência da audiência de ontem à noite com Giuseppe Conte, e na qual este oficializou o pedido de renúncia e deu como terminado o governo de coligação, que entra agora em gestão..Se dúvidas - e que dúvidas - teve Mattarella em designar o académico como chefe de governo devido à sua inexperiência política (chegou inclusive a indicar o economista Carlo Cotarelli para este formar um governo), estas devem ter sido desfeitas com o sucedido na terça-feira..Em discurso antes e no final do debate de quatro horas no Senado, Conte surpreendeu pela forma assertiva com que liderou o momento político, tendo tirado o protagonismo a Matteo Salvini, que se remeteu primeiro a uma expressão vazia para depois contra-atacar com um arsenal de pantominice, ao qual não faltou um beijo ao rosário. O discurso de uma hora de Conte foi subindo no tom contra Salvini e terminou ao dizer "O governo acaba aqui.".A lição ou o ajuste de contas de Conte.Antes começou por explicar o que o levou ali, esclarecer "num debate público com transparência a responsabilização de todos os protagonistas da crise". De seguida criticou o tempo escolhido por Salvini. Esta crise ocorre num momento delicado do diálogo com as instituições da UE. As negociações para a designação dos comissários estão prestes a ser concluídas e eu trabalhei para garantir à Itália um papel central. É evidente que a Itália corre o risco de participar nesta negociação em condições de objetiva fragilidade", lamentou.."A decisão de desencadear a crise é irresponsável. Desta forma, o ministro do Interior demonstrou que segue interesses pessoais e partidários", atirou. "Iniciar a crise em meados de agosto para uma experiência de governo julgada restritiva por aqueles que reivindicaram plenos poderes - prosseguiu - e a decisão de adiar até agora a decisão tomada há algum tempo é um gesto de imprudência institucional desrespeitosa para com o Parlamento e que conduz o país a uma espiral de incerteza política e financeira. As escolhas feitas pelo ministro do Interior nos últimos dias revelam uma falta de sensibilidade institucional e uma grave falta de cultura constitucional."."Não precisamos de pessoas e homens com plenos poderes, mas que tenham cultura institucional e sentido de responsabilidade. As crises de governo, no nosso sistema, não são enfrentadas e reguladas nas ruas, mas no Parlamento", disse em referência às ameaças de Salvini. "Em segundo lugar, o princípio dos pesos e contrapesos é fundamental para garantir o equilíbrio do nosso sistema e para excluir formas autoritárias.".E por falar em autoritarismo, atacou também as relações de Salvini com o Kremlin e o alegado financiamento ilegal russo à Liga. "O caso russo merecia ser esclarecido também por causa das implicações a nível internacional, deve vir ao Senado", disse a Salvini..Mas as farpas não ficaram por aqui. O primeiro-ministro criticou a forma como o vice-primeiro-ministro, no rescaldo das eleições europeias - nas quais a Liga foi o partido mais votado - "pôs em marcha uma operação de progressivo afastamento do governo, a fim de encontrar um pretexto para chegar à crise e ir às urnas. Ao interferir no trabalho dos ministros, prejudicou a ação do governo", apontou..Num momento que ficará para a história, Conte criticou Salvini pelo uso de símbolos religiosos nos comícios: "São episódios de inconsciência religiosa que podem ofender os sentimentos dos crentes e esbater o princípio do secularismo, traço fundamental do Estado moderno", ao que o ministro do Interior beijou um rosário..No final do discurso, Salvini pede a palavra e reitera a "opção principal" pelas eleições, ao dizer não ter "medo do juízo dos italianos", mas diz estar disposto a continuar a coligação. Da bancada do 5 Estrelas ouve-se um rotundo "Troppo tardi", tarde de mais. Conte contrapõe, a propósito da retirada da moção de censura da Liga: "Não podemos, se amamos instituições e cidadãos, confiar em expedientes, táticas, e reviravoltas verbais que eu acho difícil de entender. Aprecio a coerência lógica e a linearidade da ação. A crise tem a assinatura de Salvini. Se te falta a coragem, não te preocupes, eu assumo a responsabilidade", disse Conte ao líder da Liga. .O papel de Matteo Renzi.O homem que propôs uma coligação entre o M5E e o Partido Democrático (PD), o ex-primeiro-ministro Matteo Renzi, no Senado lembrou que o governo populista falhou, e "toda a UE nos diz que a experiência populista funciona na campanha eleitoral, mas menos bem quando se trata de governar". Renzi defende a entrada do PD (centro-esquerda) no executivo pela "segurança financeira de Itália", país com a segunda maior dívida da UE (132% do PIB). Um novo governo Conte, se conseguir aprovar um Orçamento para 2020 pode evitar um aumento automático do IVA no próximo ano, que tem como objetivo suprir um buraco de 23 mil milhões nos cofres do Estado..Mas as negociações serão feitas com o novo líder do PD, Nicola Zingaretti - e é público que Renzi nunca será aceite como ator num futuro governo por parte do 5 Estrelas, pelo que o próprio já se autoexcluiu. O governo Conte II poderá também ser composto apenas por elementos do M5E e contar com o apoio parlamentar do Partido Democrático.