Manda quem pode
Com a aproximação da votação final para a escolha do próximo secretário-geral, a questão põe-se de forma cada vez mais incisiva: para ser eleito, António Guterres precisa de ver o seu nome indicado pelo Conselho de Segurança, no qual nada se passa sem a luz verde dos cinco membros permanentes. Com quem pode ali contar o antigo primeiro-ministro?
Em princípio, deverá contar com o Reino Unido, ligado a Portugal pela mais velha aliança do mundo, em vigor há 600 anos. No século XX, essa aliança foi invocada pela Inglaterra nas duas guerras mundiais e em ambas as ocasiões obteve a ajuda pedida. A última vez foi durante a guerra das Falklands/Malvinas, em 1982, quando o embaixador britânico em Lisboa citou explicitamente o Tratado de Windsor, de 1386, para solicitar a utilização da base dos Açores.
Mas a Velha Aliada pode transformar-se de um momento para o outro na "pérfida Albion", capaz de gestos odiosos como o Ultimato de 1890, ou de considerar "ininvocável" a aliança, como fez perante a invasão de Goa, Damão e Diu pelas forças armadas da Índia, em 1961. Afinal, já dizia o primeiro-ministro Benjamin Disraeli, no tempo da rainha Vitória: "O governo de Sua Majestade não tem amigos permanentes nem inimigos permanentes. Só tem interesses permanentes."
Outro potencial apoio de Guterres, segundo os observadores, é a China, país com o qual Portugal mantém boas relações desde o século XVI, quando os nossos navegadores ajudaram a dar caça aos piratas que infestavam o delta do rio das Pérolas. Os portugueses estabeleceram-se em Macau com a anuência das autoridades chinesas e ali se mantiveram durante quase cinco séculos. O clima de boa convivência apenas foi ensombrado pelo assassínio do governador Ferreira do Amaral e da subsequente batalha do Passaleão, em 1849, quando a vitória sorriu às armas portuguesas no primeiro e último combate entre os dois países.
Depois da tomada do poder pelos comunistas, em 1949, a República Popular da China continuou a tolerar a presença portuguesa em Macau, um dos dois únicos pontos de entrada de divisas e bens de consumo no país (o outro era Hong Kong). Em dezembro de 1966 e janeiro de 1967, no auge da Revolução Cultural maoista, os acontecimentos que ficaram conhecidos como "incidente 1, 2, 3" desautorizaram o governo colonial e deixaram claro que a presença portuguesa só se mantinha porque era do interesse de Pequim.
Em 1971, Portugal votou a favor da Resolução 2758 da Assembleia Geral - apresentada pela Albânia de Enver Hoxha - que abriu caminho à entrada da China Popular de Mao Tsé-Tung para a ONU (incluindo o assento permanente, com o direito de veto, no Conselho de Segurança), em substituição da República da China (Taiwan/Formosa), do nacionalista Chiang Kai-sheck.
Depois de 25 de abril de 1974 começaram as negociações para a entrega de Macau à administração chinesa. Os dirigentes de Pequim - conhecidos pela sua proverbial memória - têm boas recordações de António Guterres: foi ele quem, enquanto primeiro-ministro, conduziu a fase final do processo, concluído a 19 de dezembro de 1999. Tudo correu do agrado dos chineses. Até a estátua de Ferreira do Amaral foi apeada e embarcada para Lisboa semanas antes da abertura das Portas do Cerco.
A Rússia também é dada como um dos pesos-pesados que veem com bons olhos a candidatura de Guterres. Ao longo da história, as relações de Portugal com o país dos czares foi quase sempre amistosa. Ribeiro Sanches, um dos mais famosos "estrangeirados" da cultura portuguesa, foi médico da imperatriz Catarina, a Grande, no século XVIII.
Passado o interregno do Estado Novo - que recusou a admissão da URSS na Sociedade das Nações e viu em troca vetada por aquela a adesão de Portugal à ONU, em 1946 -, o relacionamento entre os dois países voltou à normal cordialidade, com um pequeno percalço já na fase final da Guerra Fria, quando Portugal expulsou quatro funcionários da embaixada soviética, apanhados a "exorbitar" as suas funções diplomáticas.
Apesar de Lisboa alinhar com as sanções da UE à Rússia por causa da situação na Crimeia, as relações entre os dois países mantêm-se boas, tendo sido muito apreciada a recente ajuda russa, com o envio de aviões para combater os incêndios que neste mês assolaram Portugal.
Do ponto de vista russo, Guterres parece preferível a algum candidato - ou candidata - do antigo bloco de Leste, hipersensível à proximidade do poderoso vizinho.
Quem tem mantido reserva sobre a sua preferência é a França. Segundo a imprensa parisiense, parece que a diplomacia gaulesa faz questão de que o próximo secretário-geral da ONU fale francês, o que é o caso de Guterres - mas também de outros candidatos. Quanto às relações históricas entre Portugal e a França, basta dizer que o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, era filho de um francês e o último, D. Manuel II, era filho de uma francesa. Pelo meio houve muitos casamentos reais, tratados e até um "pacto de família". Se o rei de França tinha obtido do Papa o título de Cristianíssimo, o de Portugal não se ficou atrás e mandou uma luzida embaixada a Roma que lhe valeu o de Fidelíssimo. O pior foram as invasões napoleónicas mas nem por isso a França deixou de ser a grande referência cultural das elites portuguesas, assim se mantendo durante o resto do século XIX e quase todo o século XX.
Até à década de 1980, o francês ocupava o lugar que desde então passou a pertencer ao inglês nas escolas e universidades portuguesas. O mesmo se passava na política e na diplomacia. De Gaulle, o escritor André Malraux, ministro da Cultura, e o ministro dos Negócios Estrangeiros Couve de Murville tiveram uma palavra a dizer na criação da Fundação Gulbenkian. Hoje a França pesa menos no mundo... mas continua a ter direito de veto no Conselho de Segurança da ONU.
Por falar em peso, uma coisa é certa: nenhum candidato será escolhido sem o beneplácito americano.
À luz da história, as relações entre Portugal e os EUA têm sido exemplares. Desde o reconhecimento da independência da jovem república ainda antes do Tratado de Paris, que consagrou a entrada dos Estados Unidos no concerto das nações, passando pela influência do abade Correia da Serra, embaixador e amigo íntimo do presidente Jefferson, até à base das Lajes e à NATO, Portugal foi sempre um aliado leal dos EUA - e, em geral, vice--versa.
Na verdade, Guterres tem uma folha de serviços impecável... mas há meses que um grupo de senadoras, em Washington, vem fazendo lóbi para pressionar Obama a usar toda a influência dos EUA de modo a garantir que o próximo secretário-geral da ONU seja uma mulher. Primeiro falava-se da búlgara da UNESCO; nas últimas semanas, o palco tem sido ocupado pela argentina que até já trabalhou com o secretário-geral cessante, o qual não se coibiu de lhe dar, publicamente, uma mãozinha.
Resta saber se a declaração de Ban Ki-moon, que suscitou uma pronta reação do chefe da diplomacia portuguesa, é já resultado da tal pressão que as senadoras americanas querem ver exercida a favor de uma solução ditada pelo sexo (ou género), ao arrepio do mérito.