Maldizeres do rock

Os antigos deuses do <em>rock </em>não tinham grande opinião sobre si mesmos - e muito menos sobre seus adoradores.
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Enquanto lá fora quase um milhão de brasileiros e turistas se entregam aos delírios do Rock in Rio, tirei das estantes alguns velhos livros e revistas sobre rock e pus-me a folheá-los. Achei coisas interessantes. Frank Zappa, grande músico, definiu os jornalistas de rock como "pessoas que não sabem escrever entrevistando gente que não sabe falar para alguém que não sabe ler". O próprio Zappa foi cruelmente adiante e definiu o ouvinte típico de rock como alguém tão analfabeto que "não consegue ler nem o rótulo do disco que está escutando". Se Zappa tinha uma opinião tão baixa sobre seu público, porque então se dedicava ao género? A resposta talvez estivesse no título de um dos seus melhores discos: We're Only in It for the Money (Só Estamos Nessa por Dinheiro). Mas, como sabemos, não era por isso. Zappa era um dos poucos roqueiros da sua geração com formação teórica - foi aluno de Karlheinz Stockhausen, na Alemanha - e, mesmo tocando rock, conseguia fazer música.

Não sei como é hoje, mas os roqueiros do passado não se cansavam de diminuir a sua música e os seus fãs. Mick Jagger disse várias vezes: "De que servem as letras das nossas músicas? O público não consegue guardar nem mesmo o refrão. Repita qualquer coisa como (I Can"t Get No) Satisfaction e pronto. Está resolvido." Joey Ramone, vocalista e líder dos Ramones, grupo que ajudou a libertar o rock da pompa conceitual que quase o asfixiou nos anos 1970, também ameaçou: "Se alguém disser que os Ramones usam mais de três acordes em uma música, eu desminto e processo." E Keith Richard, colega de Jagger nos Rolling Stones, admitiu: "Houve uma época em que corremos o risco de nos tornar respeitáveis." Keith estava certo - injetar respeitabilidade no rock, como Jann Wenner, fundador da revista Rolling Stone, insistia em fazer, é como fornecer Neocid a uma barata.

Certa vez, numa entrevista, John Lennon suspirou: "É preciso que uma pessoa se humilhe completamente para chegar aonde os Beatles chegaram." Não explicou porquê. Mas deve ter valido a pena porque a sua canção Imagine, para muitos um hino à igualdade social, soa quase irreal diante da descomunal conta bancária administrada por sua viúva, Yoko Ono. Mas os Beatles não fingiam ser o que não eram. Perguntado certa vez sobre as suas preferências culturais, Ringo Starr respondeu: "Adoro Beethoven. Principalmente os poemas." Ignorante? Sim e não. Segundo os amigos, Ringo se fazia passar por ignorante para esconder a sua real ignorância. Já o guitarrista Jimi Hendrix, levado certa vez a uma galeria de arte em Nova Iorque e exposto aos quadros de Van Gogh, exclamou: "Uau! Em que banda ele toca?" A cantora Joni Mitchell, em quem muitos veem uma intelectual, confessou: "Aproveito as horas em que estendo a roupa no varal para compor as minhas letras." E Bob Dylan, muito antes de se tornar Prémio Nobel da Literatura, já havia dito: "Não me interpretem mal. As minhas canções não querem dizer nada. São só um monte de palavras." E completou: "Todos os meus discos são uma piada."

Alguns desses rapazes eram de uma sinceridade admirável. "Se eu cantar sem rebolar os quadris, vou ter de voltar a dirigir caminhão", disse Elvis Presley em 1956. E acrescentou: "Não sei nem uma nota de música - nem preciso." "O que eu queria mesmo era ser jogador de futebol", declarou Rod Stewart, que, dizem, até que levava jeito para a bola. "Tentei o suicídio certa vez", admitiu Elton John. "Liguei o gás, mas esqueci-me de fechar as janelas. O jeito foi tornar-me cantor." E, numa precoce demonstração de humildade, Bruce Springsteen disse em 1977, antes de se tornar um superstar: "Tenho um carro, um caminhão, uma moto e uma casa. O que mais posso querer?"

"Os seus dentes são lindos, querida. O seu cérebro é que precisa de umas obturações", disse John Lennon a uma fã que declarou a sua adoração por ele. "Finalmente aprendi a cantar", exultou a exuberante Linda Ronstadt nos anos 1990. "Pena que tive de fazer isto em público", suspirou. E, depois do fim dos Beatles, George Harrison afirmou que Paul McCartney sabia que as suas canções eram para "menores mentais de 14 anos". Bem, a idade mental do próprio George também não ia muito além - na opinião da sua ex-mulher, Patty Boyd, ao trocá-lo por Eric Clapton.

"Com aquele par de peitos, ela precisa de saber cantar?", perguntou o produtor de Madonna no início da sua carreira. "Não tenho o menor interesse em música", declarou Robert Fripp, líder do histórico King Crimson, sobre o qual se escreveram até tratados filosóficos. E Van Morrison não ficou atrás: "Para mim, o tipo de música que faço está ligeiramente abaixo do nível das histórias aos quadradinhos."

E, agora, atenção: "Cuidado com esses gajos, os Beatles. Eles são génios. Vão arruinar-nos", advertiu em 1963 o obscuro compositor Bert Berns, autor de musiquinhas elementares como Twist and Shout. Mas, sem saber disso, naquele mesmo ano, os Beatles gravaram Twist and Shout e Bert Berns ficou rico, livrando-se de terminar os seus dias na fila da sopa.

Talvez muitos desses nomes não queiram dizer nada hoje para os jovens que estão superlotando o Rock in Rio. Mas, um dia, todos já foram deuses. As portas dos palácios se abriam para eles à sua simples aproximação. Muitos, ao entrar pela primeira vez num avião, foram diretos para a primeira classe. As mulheres mais fabulosas do mundo se jogavam aos seus pés. E não havia ninguém mais espantado com isso do que eles próprios.Todas essas frases foram tiradas de artigos e entrevistas com eles.

Jornalista e escritor brasileiro, autor de Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova (Tinta-da-China).

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