Maldita cocaína

A toxicodependência é, como o alcoolismo, um caso de saúde pública e não de polícia.
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Como acontece periodicamente, a UNDOC (United Nations on Drugs and Crime) reuniu na semana passada para, pela enésima vez, discutir e estabelecer um plano de acção para o combate às drogas. Não de todas, claro está.
 
Já não vale a pena discutir o atentado à liberdade individual, a diferença artificial entre drogas legais e ilegais - então se falarmos em Portugal, onde não passa um dia em que não apareça um alcoólico na televisão como instrumento humorístico, parece quase patético -  ou que morrem mais pessoas por consumo de drogas adulteradas do que por excesso de utilização.
 
É também espúrio explicar que um cidadão que fuma um "charro" numa festa é tão toxicodependente como é alcoólico um outro que bebe um vodka tónico ao fim do dia. Porque será que declaramos guerra aos cidadãos consumidores de cannabis ou heroína e pactuamos com absoluta normalidade com fumadores,  bebedores de álcool ou utilizadores de barbitúricos?
 
A toxicodependência é, como o alcoolismo, um caso de saúde pública e não de polícia.

Ninguém ignora que grande parte da população prisional mundial está directa ou indirectamente relacionada com crimes ligados ao tráfico ou consumo.
Sabemos bem que cada vez que é apanhada uma quantidade significativa de droga aumentam, no curto prazo, os preços e, com eles, a criminalidade. No entanto, os fluxos são tão regulares e a oferta mantém-se de uma forma tão constante que os preços das drogas têm-se mantido estáveis.

Mais: por muito duras que sejam as penas, o tráfico pura e simplesmente não diminui. Nem diminuirá enquanto existir procura - que é impossível de extinguir -  e existirem pessoas que estão dispostas a transportar o produto, seja por necessidade, seja por promessas de enormes ganhos.
 
As tentativas, sempre falhadas, de limitar a oferta, conseguem na melhor das hipóteses a transferência da produção de uma região para outra. Tem também originado um aumento da oferta de novas drogas sintéticas mais poderosas e perigosas produzidas em laboratório sem qualquer tipo de controlo.  
E que dizer das populações das áreas tradicionais de cultivo escravizadas pelos barões da droga que são a única "autoridade" dessas zonas?
Como parar um negócio que segundo a ONU movimenta 320 biliões de USD por ano?

O tráfico tem servido para financiar guerras, para promover grupos terroristas e para construir autênticos impérios de crime. Estas organizações conseguem controlar grandes partes de território e mesmo países inteiros.
Imagine-se o que se poderia fazer com o dinheiro gasto na luta contra o tráfico ou com a taxação destes produtos: campanhas de esclarecimento acerca dos malefícios destas drogas, clínicas de desintoxicação, controlo de qualidade, incentivo a propostas de vida saudável.

Mas afinal porque será que a cocaína ou o haxixe ou a heroína são, em praticamente todos os países, produtos de comercialização e consumo ilegais?
Porque se persiste num caminho que já provou estar errado?
Não é, com certeza, porque os responsáveis pensem que a legalização irá fazer crescer o consumo.

Os nossos governantes sabem melhor do que ninguém que isto não é verdade. Tanto a realidade das outras drogas legais como inúmeros estudos o negam.
Esta teimosia vem pôr a nu a incapacidade de se proporem medidas que não colhem um imediato apoio na opinião pública e que exigem um grande esforço de esclarecimento. Prefere-se insistir conscientemente em políticas erradas para não pôr em causa mitos antigos.
 
Muitos políticos dirão que há outros problemas prioritários. Mas que debate será mais importante que o de questionar uma legislação que semeia a violência e a insegurança nas nossas ruas, trata doentes como criminosos e que faz nascer e prosperar autênticas multinacionais de crime?

O editorial do Economist (que há vinte anos faz campanha pela legalização das drogas)  de dia 5 deste mês dizia que a legalização não seria a boa solução mas a menos má. É, para a realidade do nosso mundo, a única solução.

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