Malawi. Um lago onde também se pesca à mão

Mala de viagem (109). Um retrato muito pessoal do Malawi.
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"Há cada vez menos peixe", disse-me Wilson, referindo-se ao lago Malawi, ou Niassa. Ele tem sido pescador, dando continuidade aos seus antepassados ainda dos tempos da Niassalândia, que se tornou independente dos britânicos, em 1964, e passou a designar-se Malawi. Situado no vale do Rift Ocidental, o lago é um dos mais profundos do mundo. Trata-se de uma área de excecional beleza natural, com as paisagens acidentadas em seu redor contrastando com as águas límpidas que abrigam muitas centenas de peixes endémicos, conhecidos localmente como "mbuna" e que apresentam um exemplo significativo da evolução biológica. A vila de pescadores onde estacionei tornou-se numa atração turística. Do lago provêm a principal fonte de proteínas para os malawianos e a base da gastronomia dos turistas, que se alojam nos novos complexos turísticos, paredes meias com as casas típicas. Uma rua de terra batida, paralela à costa, separa os hotéis das habitações familiares e dos estabelecimentos locais que dão vida e alma à aldeia. Os turistas atravessam essa rua para usufruir do comércio e da praia. Todos gostam de comer o peixe daquele lago, que já terá tido, porém, mais de 400 espécies distintas, nomeadamente ciclídeos. Wilson tem uma cabana de pescador na areia dourada e foi lá que comemos um assado de peixe acabado de apanhar, acompanhado com legumes e cerveja artesanal de milho. Durante o almoço, a que se juntaram a mulher e as duas filhas gémeas já adultas, foi-me dito das dificuldades crescentes para os pescadores, porque é manifesta alguma degradação do habitat aquático do lago, particularmente devido à atividade pesqueira com artes nocivas, como o uso de redes mosquiteiras ou a pesca em áreas de reprodução, que impedem os ciclos de crescimento e reprodutivo das espécies. O meu anfitrião é um dos que não prevarica, garantiu-me, até porque eram visíveis as suas redes de pesca ao sol. Só que parte daquele peixe foi especialmente apanhado à mão, minutos antes, para me mostrar uma técnica ancestral, com isco de pão. O aumento da população residente e flutuante deu-se, sobretudo, com o impacto dos alojamentos turísticos, o que leva a pensar que, afinal, alguns recursos naturais podem desaparecer com o avanço do turismo. Esta realidade é um paradoxo, mas funde-se, obviamente, na sustentabilidade, este chavão que escapa aos nativos, mas, pelos vistos, também aos investidores e aos reguladores. Em frente, as ilhas de Domwe e de Thumbi West pareciam dois ilhéus ainda virgens, mas, em resposta à pergunta sobre como ir para lá, o esclarecimento veio das jovens: "Nós temos um barco, no qual é costume levarmos turistas para verem as paisagens." Pergunto para mim: "Seriam tão belos os ilhéus como o sorriso das gémeas?" Percebi que essas jornadas fazem parte do trabalho daquelas jovens, já que dificilmente poderão continuar os seus estudos em Lilongwe, a capital. Uma delas confessou, porém, que gostaria de estudar o problema da malária na Universidade de Ciência e Tecnologia do Malawi. O país tem registado milhares de casos da doença e de mortes, incluindo mais de metade de crianças menores de cinco anos. Um país sem litoral, mas com uma parte de um lago como principal motivo de interesse turístico, em vez de um safari, deve relevar esta maravilha de paisagem e a biodiversidade singular. Quem vir o dourado do pôr-do-sol em Cape Maclear jamais o esquecerá. Para além disso, a maioria das espécies de peixes não é encontrada em nenhum outro lugar do mundo; o problema é que, tal como me alertaram os meus amigos malawianos, nem ali vai ser possível encontrá-las dentro de pouco tempo, se os interesses do mundo não mudarem. Infelizmente, a razão do problema está no ser humano, eu diria, ser desumano, neste caso. Felizmente, os peixes deste lago não são como esses seres predadores, nem precisam de sermão: não se comem necessariamente uns aos outros, nem têm ambição de poder. O "Sermão de Santo António aos Peixes" (1654), do padre António Vieira, é uma metáfora que incidiu sobre a espécie humana, porque os colonos escravizavam os nativos, e os homens "devoravam-se uns aos outros". Esta alegoria à alma humana deve ser lembrada quando, presentemente, estamos a caminhar para o fim da nossa existência. Junto àquele lago, é justo que, na pessoa de Wilson, me lembre de que, também metaforicamente, todos os homens nascem iguais, mas somente os melhores se tornam pescadores, sobretudo aqueles que com as suas mãos seguram a ancestralidade da pesca.

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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