"A obra dele tem a particularidade dos olhos, não é? Ele sentia-se muito observado, espiado. Há de reparar que é constante na obra dele. Será que o marcou ali na prisão e o acompanhou a vida toda?" Aquele que viria a ser o mais internacional pintor de Moçambique, Malangatana esteve preso pela PIDE durante 18 meses - em duas vezes - entre 1965 e 66, na então violentíssima Prisão da Machava, na Matola, em Maputo, então Lourenço Marques. Era acusado de ideais anticoloniais e de ligações à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO)..Pedro Mesquita da Cunha evocava aqueles olhos carregados a preto que se veem em desenhos austeros, traçados a esferográfica, caneta de feltro, ou tinta da china, e em papel fino. Desenhos que podem ser vistos - e comprados - até 6 de maio na Sala Branca, em Campo de Ourique, Lisboa. A exposição Malangatana - Os anos da prisão contabiliza como "anos da prisão" também aqueles que seguiram o cárcere, e em que Malangatana continuou a representá-lo. "Provavelmente naqueles desenhos de 67, ele homenageia os companheiros dele; têm o Malangatana e várias personagens ao pé e, ao fundo, atrás, as grades da prisão com os prisioneiros", acrescenta Mesquita da Cunha..Artista completo.O arquiteto José Forjaz está no seu escritório de Maputo. Nasceu em 1936, como Malangatana. Foram inseparáveis. Viveram juntos os tempos da transição para a independência de Moçambique, no seio da FRELIMO - o pintor chegou a ser deputado durante quatro anos, o arquiteto cumpriu, entre outras funções, a de Secretário de Estado do Planeamento Físico de Samora Machel. "Não tínhamos muito tempo para grandes confraternizações, ou se tínhamos, não era esse que a gente lembra. A confraternização era a trabalhar." E foram trabalhando sempre juntos, desde jovens, no ateliê do (também) arquiteto Pancho Guedes - quando lhe perguntamos como era Malangatana então, lembrando a figura exuberante que é recordada, o arquiteto ri-se e lança: "Mais magro". Juntos, depois, no projeto de Moçambique independente, e em todos os anos que se seguiram até à morte do pintor, em 2011, aos 74 anos, em Matosinhos. Juntos, ainda, na última exposição, na Casa da Cerca, em Almada..Da prisão de Malangatana, José Forjaz nota: "Não era tema de conversa que ele explorasse muito. Aliás, a minha experiência, com todos os meus amigos, colegas, e neste caso um irmão de há muitos anos, é que todos eles evitavam falar desses tempos. Nunca ouvi o Malangatana falar especificamente da sua passagem pela prisão.".Contam os desenhos o que ele não contava. Ele que costumava dizer: "Pintar é um conversar sobre os nossos desejos, dilemas e receios. O cozinhar de um quadro não pode ser um mero exercício de trabalho, tem de ser um espelho do que vai na alma.".São cerca de 40 as obras que compõem a mostra. Pertencem a uma coleção particular e fazem parte de um universo de mais de uma centena deles, que também foram mostrados na Fundação Mário Soares e no Museu de Aveiro, em 2006. Não há naquelas obras as cores com que nos chamou depois Malangatana, nomeado Artista pela Paz da UNESCO, e reconhecido com a medalha da Ordem do Infante D. Henrique em Portugal.."Aquilo foram obras feitas, antes de mais nada, com limitações materiais. Ele não tinha à disposição materiais de pintura e desenho que teria noutras circunstâncias da sua vida." Todavia, reconhece Forjaz, aqueles desenhos representam uma espécie de centelha no que foram os tempos de cárcere. "Não como imperativo moral e de exploração de uma necessidade de desabafo psicológico, mas como forma de libertação das condições que a prisão impõe a qualquer pessoa. Penso que o desenho tem essa enormíssima qualidade de redenção do que se passa à nossa volta. Eu sinto-me muito próximo nesses aspetos e posso quase afirmar que o que estou a dizer é uma interpretação não muito arriscada do que foram esses desenhos para ele.".Malagantana foi um artista completo. Cumpriu quase tantos ofícios quanto um homem pode cumprir. Além da pintura e do desenho fez cerâmica, tapeçaria, gravura e escultura. Foi programador cultural, ator, até bailarino. Forjaz recorda-o a chegar a sua casa "ao fim da tarde. Sentava-se ali um bocado porque lhe apetecia tomar o nosso café e conversar um bocado. Normalmente tínhamos coisas para fazer juntos.".Os desenhos que agora podem ser vistos, diz o arquiteto, "não são de maneira nenhuma o que ele faria noutras circunstâncias. Ele era muito mais exuberante, com outra forma de expressão plástica. Aqueles são realmente muito mais duros, simplificados, ascéticos e talvez transmitam essa mensagem de uma maneira bastante clara para quem lhes conheça a história também." Fica a história. Os desenhos, esses, estão na Sala Branca.