Mais um prego no caixão da Justiça
A situação da Justiça em Portugal, há muito um dos principais problemas com que se defronta a nossa sociedade, sofreu recentemente um importante revés ao saber-se que nem o PS nem o PSD têm intenção de abordar o tema no âmbito da revisão constitucional em curso. Os males de que enferma o setor não são solucionáveis sem uma alteração constitucional que ataque o corporativismo, o formalismo e o academismo, trazendo transparência, qualidade e eficácia aos tribunais portugueses. Precisamos de uma revolução na Justiça. Quem o diz é a SEDES (Relatório datado de 1 de outubro de 2021), uma associação que não é conhecida pelo seu extremismo.
Mas o que já era mau pode tornar-se bem pior se os advogados portugueses perderem - como parece inevitável - a liberdade, a autonomia e as imunidades profissionais de que gozam desde há quase um século. No passado dia 22 de dezembro, a Assembleia da República aprovou, com os votos a favor do PS, do PAN e da Iniciativa Liberal, um projeto de lei que altera substancialmente dois diplomas impostos pela troika para regular o funcionamento das associações públicas profissionais - a Lei 2/2013, de 10 de janeiro e a Lei 53/2015, de 11 de junho.
A legislação aplica-se às 20 ordens profissionais existentes no país e que contarão, segundo o Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP), cerca de 430 000 profissionais. As normas aprovadas em dezembro último agravam substancialmente as exigências já contidas na legislação do tempo da troika, prevendo nomeadamente que o órgão disciplinar tenha apenas membros não inscritos na ordem. A mesma regra exclusória se aplicará ao júri de avaliação do estágio profissional, que passará a ser integrado apenas por não advogados. Já o "órgão de supervisão", que a lei atual permite seja composto por um terço de membros não inscritos na ordem, passaria a ter imperativamente 60% de não inscritos, dos quais 40%, pelo menos, seriam professores de direito.
No dia 1 deste mês o Presidente da República enviou o novo diploma para o Tribunal Constitucional, com vista à fiscalização preventiva da constitucionalidade de algumas das suas disposições.
Todavia, as novas normas relativas à admissão na ordem jurídica portuguesa de sociedades profissionais multidisciplinares detidas por terceiros (bancos, consultoras ou... padeiros) não foram sujeitas ao crivo do Constitucional. Pior: não há qualquer referência no pedido do PR ao estatuto especial dos advogados, que são os únicos profissionais visados por esta lei lei que gozam de imunidades garantidas constitucionalmente (art. 208 da CRP).
As imunidades conferidas aos advogados para o exercício do seu mandato existem para defesa da sociedade, e só elas permitem a representação dos cidadãos de forma livre, independente e responsável, sem medo de represálias e intromissões por parte dos poderes político, judicial ou económico. Aqui se incluem a imunidade penal, civil e disciplinar por declarações do advogado perante um tribunal ou qualquer autoridade administrativa. Pergunta-se: como fazer valer esta garantia de não sancionamento perante um órgão disciplinar onde não tem assento qualquer advogado?
A inserção da advocacia no processo institucional de realização da justiça implica que os direitos dos advogados sejam, pelo menos, equiparáveis aos dos agentes do Ministério Público, representantes de um Estado cada vez mais forte e hegemónico. Não há justiça digna desse nome quando não há igualdade de armas entre os advogados do Estado e os advogados dos comuns.
Ora, a nova lei desarma a Ordem dos Advogados - cujo estatuto custou 80 anos de luta e fará um século em 2026 -, configurando uma verdadeira ameaça à identidade e garantias da profissão. Não tenhamos dúvidas: se esta lei passar no Constitucional, o sistema de justiça português, já de si ineficiente, arcaico e jacobino, passará a estar ainda mais perto do descrédito e da falência.
Advogado. Presidente da associação ProPública - Direito
e Cidadania