Mais um PR a fazer de morto?
1 - Há eleições grandes e há grandes eleições. Eleições participadas, eleições quase ignoradas. Eleições e emoções, abstenções e desilusões - a democracia portuguesa consolidou-se em 41 anos de direito de voto. Tem-se exercido o voto, o direito nem por isso. É um Presidente que desta vez elegemos. Um Presidente para quê, já que o porquê ninguém questiona.
O embate Freitas-Soares foi uma grande eleição. E uma eleição em grande. O país partido ao meio. Quase não havia meio, tão extremadas estavam a ideologia e a sociedade, direita e esquerda, sem meio e sem meios-termos: maus e bons, sovietes contra fachos, comunistas a engolir sapos, Soares eleito, foi Freitas quem então levou o sopapo.
Podíamos estar a viver uma campanha assim, depois daquelas legislativas com um desfecho assado. Viva, vibrante, ideológica, assumidamente contrastante. Podíamos estar a enriquecer a sociedade, já que a economia faliu - a economia não, mas o modelo que a sustentava. Mas não está vibrante nem viva. Porque Marcelo está a fazer-se de morto. Não levanta a cabeça, porque é ele o boneco da feira. Não está a ser regeneradora, porque os candidatos que regeneram ou são fracos, ou são baços ou nem candidatos sequer são.
Não alinho na ideia de que dez candidatos a Presidente da República é demais. Não posso evidentemente concordar que 25 debates em três canais é demais. Não é possível aceitar argumentos, como Maria de Belém já usou, que excluam candidatos por idade a menos (Marisa Matias) ou idade a mais (para se estrear na política, claro, como insinuou sobre Sampaio da Nóvoa). E combato o preconceito, elitista e perigoso, que nega a um calceteiro a oportunidade de se candidatar.
Qual é o problema de um empresário, um médico, um operário, um padre, duas profissionais da política, um comentador de televisão, um reitor universitário, um justiceiro ou seja-lá-quem-for queiram chegar ao mais alto cargo da República?! E o que distingue um zé-ninguém, que não pensa vencer e só quer aparecer, de uma maria-conhecida que contrata agências de comunicação para fabricar vencedores e derrotados?
2 - Nunca houve uma eleição presidencial tão disputada, nunca houve uma campanha tão debatida, dez candidatos, 25 debates, não há qualquer banalização nisto. Venha o Tino, venham os professores, os engenheiros e os doutores, viessem outros de outras artes e ofícios, se há o direito de voto consagrado, que razões superiores para negar a alguém a vontade de ser votado?
É pobre a democracia que se mede aos palmos. Como foi pobre a democracia que, nestes anos de chumbo, teve um Presidente constitucionalmente concatenado. O país destroçado e ele preocupado. Com o funcionamento regular das instituições, quando é o funcionamento irregular das instituições que mais importa. Não é o nosso direito de voto, é o sentido que ele retirou aos votos que lhe deram.
Presidente ativo, Presidente passivo, sempre houve pequenos e médios candidatos, mas nunca fomos a votos com a função presidencial tão esvaziada. E desvalorizada. E este é o aspeto mais trágico desta campanha. Marcelo Rebelo de Sousa quer chegar a Belém desfilando num concurso de simpatia. Não se expõe, porque já estava muito exposto. Não toma partido por nada que o entusiasma nem tem o entusiasmo do seu partido.
O governo socialista não é ilegítimo, mas falta-lhe a autoridade que só os votos conferem. O Conselho de Ministros não ministra muito, porque é o Parlamento que mais parlamenta. Um poder legislativo empenhado nas causas fraturantes e um poder executivo que não executa o muito que quer, mas o pouco que pode.
O Presidente da República não pode continuar a resumir-se à função de guia ilustrado da Constituição da República, como Cavaco Silva foi, porque é de um líder inspirador, um homem ou uma mulher com visão, capaz de nos fazer acreditar novamente em algo, quando fomos deixando de acreditar em quase tudo.
Marcelo foi um comentador televisivo excelente, mas conforma-se no papel de candidato suficiente. Não há alegria na sua campanha, não se vislumbra uma campanha sequer. Não entusiasma ninguém porque preferiu desaparecer. Não levanta ondas. Desaparecido sem combate, porque fosse ele jogador de boxe e só treinava a cintura - para se desviar dos golpes, das luvas dos outros nove que contra si estão apontadas.
Não gostávamos que o próximo Presidente da República ganhasse por falta de comparência dos outros. No momento em que anunciou a sua candidatura, em Celorico de Basto, era ele e o povo, uma conversa sem intermediação, a popularidade ao serviço de causas. Desapareceu nesse exato momento. Agora é a simpatia convertida em votos.
Já se viu isto antes. António Guterres quis uma maioria absoluta sem a pedir, foi reeleito sem fazer campanha eleitoral, passou metade do tempo a chorar a morte de Amália e a outra a rezar pela desgraça timorense - e os portugueses negaram aquilo que era certo. Em empate técnico, partiu para um segundo mandato, caiu no pântano e, como se sabe, emigrou. Acho que nunca mais com este país se reconciliou.
Marcelo Rebelo de Sousa, que contra ele perdeu eleições, que por causa dele nunca chegou a primeiro-ministro, deveria ser o primeiro a recordar uma lição importante: os portugueses não passam cheques em branco. O exercício da democracia pede à sociedade que seja o motor. Ao candidato a Presidente da República exige-se a não resignação. Se lá chega em ponto morto, porque haveremos de acreditar que será ele depois a puxar por isto?