Nas livrarias desde ontem, Portugal na Era dos Homens Fortes: Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid seria lançado na terça-feira com apresentação de Marcelo Rebelo de Sousa, mas a cerimónia foi anulada para evitar ajuntamentos. Bernardo Pires de Lima e o Presidente encontram-se com alguma regularidade: o primeiro fundou o Grupo de Reflexão sobre o Futuro de Portugal para discutir com o segundo os desafios do nosso país. É nesse espírito pragmático e desprovido de fatalismo que no livro articula o posicionamento de Portugal face ao mundo. Para contrariar a ascensão do trumpismo..No livro há um reiterado apelo à defesa dos valores da democracia liberal. Mas do outro lado da barricada o apelo ao irracional, às teorias da conspiração, ao medo e ao ódio, têm mais apelo. O que fazer? Não se pode responder na mesma moeda fingindo ter o mesmo perfil à força. É preciso um misto entre razão e coração. Acho que há espaço político e social para que as pessoas se encontrem num determinado discurso mobilizador aspiracional que não seja destrutivo da ordem social. Sendo sério não tem de ser cinzento. A prova de que é possível fazer isso é que os parlamentos no quadro da União Europeia [UE] têm 70% a 80% dos deputados afetos aos partidos tradicionais. As forças mais extremadas continuam a ser nichos de mercado eleitoral e de representatividade. Quer dizer que a receita histriónica, negativa e nativista não é necessariamente aquela que vinga. Com o declínio dos media tradicionais e a ascensão de outras plataformas, têm um eco que torna tudo o que é ruído em discurso normalizado. Quem está do lado certo da história ou vai a jogo no mesmo ringue e perde, ou tenta mudar o perfil, ou tenta recuperar os canais tradicionais e corrigir o mais depressa possível os anátemas em que os partidos mergulharam..Essa dificuldade de comunicação não é só portuguesa nem só nos parlamentos nacionais, mas talvez mais ainda a dificuldade de projetar uma imagem positiva da UE. Do ponto de vista comunicacional são muito mais os erros do que as virtudes no campo institucional europeu. Um é a máquina ser muito pesada e responder sempre tardiamente aos vários momentos políticos da história e a outra tem que ver com as competências exclusivas, que são muito poucas. Como tem poucas competências exclusivas, muitas partilhadas e muitas de exclusividade dos estados, esta mistura não permite que a comunicação seja afinada do ponto de vista das instituições, é sempre partilhada. Isto gera uma cacofonia incrível. O que nos chega são redes sociais sem rasgo nenhum ou então uma catadupa de porta-vozes, que afugenta qualquer europeísta convicto. Nada disso é atrativo. Mas há que reconhecer que, por exemplo, em matérias de saúde pública ou de fronteiras as competências são dos estados. Podemos começar a ter um debate sério sobre a reabertura dos tratados para rever as competências e meios ao dispor para na próxima crise as coisas correrem melhor..É um europeísta convicto mas não refere uma única vez o federalismo. Porquê? Para bom entendedor meia palavra basta. É como a mutualização da dívida. Ficou ipsis verbis no acordo do Conselho Europeu sem precisar de lá estar escrito. Essas terminologias, como tornam o debate muito binário, é inteligente politicamente deixá-las cair, trabalhá-las com outros termos. Não tenho problemas com o federalismo desde que seja inteligente, sério e uma resposta à altura dos problemas, não forçado por um qualquer fetiche ideológico. Olho para a política com pragmatismo. Se estamos com problemas corrijam-se. As crises ajudam a moldar as decisões..Faz uma série de sugestões para Portugal, como uma Secretaria de Estado sobre a antecipação de tendências [foresight], um embaixador para as alterações climáticas, a aposta estratégica na diplomacia e o reforço de quadros portugueses em órgãos internacionais. Destas ideias qual é a mais premente? Pensarmos além da agenda do presente é fundamental. Não é só criarmos grandes planos estratégicos, apesar de preferir que existam. Temos de ter na cabeça do decisor mais informação sobre o dia seguinte. Para isso é preciso ir buscar trabalho em rede. Os gabinetes ou a administração pública não têm de criá-la de raiz, existe muita coisa feita e pode trabalhar em rede. Há uma tendência nas organizações e nos governos para a criação dessas figuras e dessa recolha informativa para podermos decidir no presente mais adaptados às tendências que vão marcar os próximos cinco a dez anos. A chanceler alemã tem, o governo francês tem. No caso da UE é muito interessante porque fez subir essa matéria a uma das vice-presidências, tem um orçamento muito generoso e penso que o comissário eslovaco responsável, Maros Sefcovic, foi o primeiro a fazer um report estratégico sobre grandes tendências com impactos diretos e indiretos na UE. Isso ajuda a balizar as melhores políticas públicas. Há sempre imponderáveis, como a crise pandémica, mas mesmo esta podia ter instrumentos. A conclusão que se tirou é que ninguém dava relevância à matéria e poucos estavam preparados para atacá-la. Isso era uma grande transformação na máquina do Estado e não tem de viver só da máquina do Estado, pode ir buscar expertise às fundações..Isso deveria refletir-se no quadro político vigente. Por exemplo, no governo de Passos Coelho só se falava em austeridade, não se ouvia uma palavra sobre o futuro. De acordo. Há bocado usei uma palavra, aspiracional, que não deve estar só conotada com o elevador social. Tem a ver com uma ideia de que depois de um período difícil há um horizonte coletivo que é possível construir. Esse discurso nunca vingou nesse período. Nem todos os políticos têm o talento de saber olhar para a frente e ter palavras de incentivo. Quem tem o poder executivo tem de olhar mais para a gestão quotidiana ou a prazo médio. Mas por exemplo a Presidência da República pode e deve ter um discurso para além da espuma dos dias. Pode introduzir no debate público as questões fundamentais da próxima década portuguesa..Há um ano Greta Thunberg e a crise climática faziam parte da agenda mediática. A pandemia poderá ter sido uma bênção para os negacionistas das alterações climáticas? Quem não acredita na ciência continua a não acreditar em estudos sérios, seja sobre alterações climáticas seja sobre vírus. Há é mais uma corrente de argumentos a invalidar essas posições cegas. Acho que foi Guterres quem disse há dias que as alterações climáticas eram um tema mais relevante para o mundo do que a pandemia. Isto deve ser dito porque é correto, mas também é uma frase que para o cidadão comum pode parecer brusca, bruta e sem sensibilidade. Mas nos próximos anos não há assunto mais importante do que as alterações climáticas porque têm implicações a todos os níveis, geopolíticos, de recursos naturais, deslocações migratórias forçadas, acesso a bens essenciais, inflação generalizada e súbita, é um eixo central da política internacional. Quem está do lado negacionista dificilmente vai ver a luz. A seguir à pandemia há de vir outro, como no caso americano uma hipotética vitória de Joe Biden não reconhecida, porque o discurso já está feito: a vitória democrata foi montada sob uma patranha qualquer eleitoral..Afirma no livro que os EUA e o mundo não aguentam mais quatro anos de Donald Trump. Qual é o grande problema? Os problemas das organizações internacionais são anteriores a Trump. O que ele faz de uma maneira abrupta é esvaziá-las financeira e politicamente. Para as recuperar é preciso reinvestir e dar-lhes capital político. Joe Biden tem essa predisposição mas vai precisar de um alinhamento com as bancadas do Congresso. Diria que mais quatro anos de Trump podem ser fatais para a ordem constitucional americana. Ela já está em choque, com a arbitrariedade do poder, com um presidente que incita quase à violência, que acomoda todo o tipo de anarquia, desde milícias a entrar em parlamentos estaduais e a fazer policiamento nas ruas, não condena toda a violência, só parte. Olhamos para a Casa Branca como um sítio que em teoria faça um discurso de paz social e não da guerra. Ele é exatamente o contrário, como Bolsonaro. Essa paz social, que não existe, morre de vez com mais quatro anos. Como o Partido Republicano neste momento não existe, é um culto, se vencer outra vez e garantir o Senado implica uma prepotência e uma cegueira no sistema que vai inviabilizar pontes com os democratas, quando elas são necessárias para qualquer pacote financeiro estancar a crise que se vive. Depois, vencendo, tenderá a fazer uma caça às bruxas brutal, metendo o pé em cima das oposições, seja os media, seja parlamentares democratas. Tem um fundo de autoritarismo que, se pudesse, fazia o que outros protoditadores fazem: dar um golpe na Constituição. Não estou a dizer que tem condições para isso, mas que teria vontade, que é do mesmo calibre. Isso é que é preocupante. Para nós também há uma grande pressão nas nossas democracias, que se estão a adaptar ao novo exercício do poder, com o mesmo tipo de narrativa. As tiradas de André Ventura surgem porque há uma legitimação internacional vinda do Brasil ou dos Estados Unidos para este tipo de retórica, é uma receita de sucesso. Mas precisa ser travada porque, quanto mais não fosse, a pandemia provou que estas pessoas com este tipo de exercício de poder são nefastas. Não é por acaso que os Estados Unidos e o Brasil estão no topo das infeções e das mortes..Diz-se que os EUA têm um sistema de poderes e contrapoderes, mas neste momento não é tão claro. Estão todos em causa. Por isso é que eu falava numa pressão enorme sobre a Constituição. É esta que baliza os freios e contrafreios e foi feita para este tipo de presidentes, mas estão pôr à prova o normal funcionamento das instituições. Há uma deturpação de tudo o que é Estado de Direito e separação de poderes. Mais quatro anos é perigoso para os Estados Unidos e para os países que têm laços de proximidade, porque legitima forças que estão a nascer nesse países e porque o futuro das instituições que partilhamos fica em causa. Não sei como vai ser o futuro da NATO com este presidente. Não é o único foco de tensão, há também a Turquia e necessariamente a Rússia. Mas é diferente ter um presidente alinhado com os outros do que outro completamente desalinhado, que está a minar a organização por dentro. Para nós é absolutamente estrutural, a nossa economia vive da nossa integração europeia e da sustentabilidade no quadro da NATO..Acredita que Trump e o procurador-geral William Barr irão procurar todos os buracos legais para boicotar a eleição? Completamente convicto disso. Está tudo preparado para uma longa batalha judicial e política, de manifestações na rua e boicote permanente à legitimidade à vitória de Joe Biden. O sistema [eleitoral]é muito frágil e como cada estado tem o seu próprio modelo a mobilização é fundamental porque o recenseamento não é obrigatório. A eleição é muito extensa em tópicos locais e estaduais e só no último é que tem o ticket para a presidência, é um lençol de frente e verso. Esta mistura de temas não é saudável, a máquina tem ene entropias estaduais e federais para que o voto seja uma coisa natural. Isso não é uma responsabilidade de Trump. Quanto muito percebeu que o sistema vive há muitos anos disto e vai pôr a gasolina na fogueira..Referiu a Turquia como foco de tensão. Emmanuel Macron é o único líder que de alguma forma tem feito frente a Recep Erdogan. Erdogan foi suficientemente hábil para concentrar o poder em si através de plebiscitos, eleições e alterações constitucionais, em parte à custa do fim do caminho de integração à UE. Com alguma razão, diga-se, fez das posições inflexíveis de Berlim e Paris um ricochete para alimentar uma outra visão da Turquia, que não ocidentalizada, mas uma radial de interesses mais otomanas: Balcãs, Médio Oriente, Ásia Central. Como vimos na eleição [autárquica] de Istambul, há uma sociedade vibrante, como há na Rússia. Na Turquia há sinais de que a prepotência de Erdogan chega ao ponto de querer chegar ao centenário de Atatürk sendo o novo Atatürk. E para isso vai construindo relações de paridade através da beligerância, um pouco como Putin faz, para se relacionar quase de igual para igual com a administração americana, a chanceler Merkel, etc. É uma estratégia que está a vingar, mas que tem um preço. Há uma crise económica há anos, uma sociedade completamente partida, e vive do mundo rural, um bocadinho como a Rússia. Isto é sustentável durante muito tempo? Este livro não é fatalista. Pelo contrário, é esperançoso sobre as boas moedas que existem nos vários países que estão a ser internamente atacadas por autoridades com perfil autoritário e antidemocrático. O que sinto é uma falta de partilha de esperanças. Temos de valorizar quem está na rua seis meses por uma determinada causa, seja no Montenegro, na Polónia ou na Hungria.