Mais olhos que barriga

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Tempo quente pede roupa leve, e dizer que a indumentária não interessa é algo que só se pode permitir a quem nunca teve problemas para caber dentro dela. Encolhemos a barriga para a fotografia e diz-nos o médico que 10 quilos a menos haveriam de melhorar-nos o sono e a autoestima diante do espelho ou, por estes dias de estio, no olhar que nos devolvem aqueles que cruzamos no areal, em fato de banho. O médico terá toda a razão, afinal, também é pela boca que morre o peixe.

Perder peso é matéria da ciência, mas também de culto, a roçar a religião. Sabemos de ciência certa que ser gordo pode levar à doença que antecede a diabetes e daí aos ataques cardíacos, cancro, patologias neurodegenerativas e demais Cavaleiros do Apocalipse dos nossos dias. Pelos vistos, a razão não basta para mudar comportamentos.

Aliás, nesta altura, não deverá haver uma única pessoa no mundo que ignore os efeitos nocivos do tabaco, ainda que muitos de nós continuem a fumar. Algo de fastidioso, como fazer jejum, implica o culto de mudar de vida, uma quase religião. Não, dirão os convertidos, não perdemos peso por estética, mas porque devemos cuidar de nós mesmos. E não faltam por aí receitas de desintoxicação que vão desde misturas à base de repolho, aipo e beterraba e nem sabe Deus que mais - como comer acelgas cozidas sem sal e correr uns 10 quilómetros como se nos fosse cair em cima um asteroide.

CitaçãocitacaoEncolhemos a barriga para a fotografia, mas dizerem-nos que a roupa não interessa é algo a que só se podem permitir aqueles que nunca tiveram problemas para caber dentro dela.esquerda

Mas imaginemos agora uma pílula que, para os obesos, os faria perder 20 ou 25 quilos num ano - sem dieta ou exercício, sem resistir ao impulso de assaltar o frigorífico durante a noite e comer o que essas malditas partes do cérebro lhe ditam, dedicadas a orientar comportamentos na direção do sexo e da manduca, os dois maiores mandamentos darwinianos que nos tratam como animais. O que restaria então dessa religião do corpo? Muito pouco, certo? Quem faria então dieta e exercício, os ritos centrais desse culto? Ora, a pílula que imaginamos reduz um quarto do peso de uma pessoa gorda, sem dor ou penitência, sem farsas de desintoxicação ou correrias à volta do quarteirão. É ciência pura, nada de religião.

Ora bem, anuncia a imprensa mais séria que esse medicamento já existe, não em pílula, mas em forma de injeção semanal. O seu ingrediente ativo são as incretinas, uma hormona natural produzida pelo intestino que retarda o esvaziamento do estômago, reduz o apetite e, pelos vistos, também regula a insulina. O medicamento chama-se tirzepatide e os dados sobre a sua eficácia são da responsabilidade da multinacional farmacêutica que o produz. As virtudes da nova droga ainda estão sob avaliação dos especialistas em obesidade, mas a avaliar pela publicidade a coisa parece gorda.

Entre as promessas de um corpo renovado ainda sobram dois problemas: em primeiro lugar, não se trata de uma injeção que se toma de uma vez e perde-se peso para sempre - é preciso repeti-la todas as semanas até ao fim da vida; e sendo uma droga nova, ninguém sabe ainda quais os efeitos indesejáveis, a longo prazo.

Em segundo lugar, o preço: se dependêssemos de um medicamento semelhante, que já existe no mercado, mas considerado menos eficaz, ele custaria mais de mil euros por mês, o que multiplicado pelo resto das nossas vidas somaria o valor de uma hipoteca imobiliária.

Essa é, porém, outra religião a que porventura só dedicamos culto depois de férias. É só aí, então, que também costuma emergir em nós, como refluxo gástrico, aquele sentimento piedoso de culpa coletiva que nos é muito próprio, diante das tão obscenas, quanto massivas, campanhas de emagrecimento voluntário neste mundo nosso, que desperdiça um quinto de todos alimentos que produz, enquanto o outro meio mundo passa fome ou morre de má nutrição.

Jornalista

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