Oito anos depois da entrega no Parlamento da petição que deu o pontapé de saída à discussão, mais de três anos depois do início do atual processo legislativo, a despenalização da morte medicamente assistida está prestes a tornar-se realidade. O tema sobe esta sexta-feira a votos no plenário da Assembleia da República - pela quinta vez - e, com a reconfirmação do texto, esta promete ser a derradeira votação. Dois chumbos no Tribunal Constitucional (TC) e dois vetos políticos depois, Marcelo Rebelo de Sousa fica, desta vez, obrigado a promulgar..PS, Bloco de Esquerda, Iniciativa Liberal e PAN, os quatro partidos na origem do diploma, pronunciaram-se de forma unânime pela reconfirmação do texto, após o segundo veto político do Presidente da República, em abril. Marcelo Rebelo de Sousa invocou então falta de clareza do texto sobre quem define a incapacidade física do doente para autoadministrar os fármacos letais, isto depois de os deputados terem alterado o diploma para estabelecer a primazia do suicídio medicamente assistido sobre a eutanásia. Um problema de "precisão", nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, e já não dúvidas de constitucionalidade. O Presidente da República também deixou claro que, num cenário de reconfirmação do diploma, nada terá a opor: "É a vida, não tem drama"..De acordo com a Constituição, em caso de confirmação do mesmo texto pela maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções (116 em 230), o chefe de Estado está obrigado a promulgar o diploma num prazo de oito dias a contar da sua receção. Alguns constitucionalistas têm levantado a hipótese de o Presidente da República poder invocar "objeção de consciência" - foi o caso de Paulo Otero e, ontem, em entrevista à Rádio Renascença/Público, de Jorge Bacelar Gouveia - mas as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa nunca apontaram nesse sentido. Católico praticante, contrário à despenalização da morte medicamente assistida, Marcelo sempre garantiu que não usaria o veto como uma "afirmação de posições pessoais". .Mesmo com aprovação à vista - o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, reiterou ontem que o PS vai reconfirmar o diploma - o caminho da despenalização da morte medicamente assistida, nomeadamente no que se refere à constitucionalidade do texto, não deverá ficar por aqui. Luís Montenegro voltou ontem a admitir que um grupo de deputados do PSD poderá avançar com um pedido de fiscalização sucessiva do diploma junto do TC. " É uma possibilidade que poderá valer a pena, até para haver segurança e certeza jurídica no nosso ordenamento", referiu o presidente social-democrata. Joaquim Miranda Sarmento, líder parlamentar, também disse ontem que subscreverá um pedido de fiscalização sucessiva se um grupo de deputados do partido avançar, mas sustentou que o pedido ao TC não será feito, de forma oficial, pelo grupo parlamentar. Ao contrário da fiscalização preventiva, a sucessiva não tem prazos para avaliação e não suspende a implementação da lei. Recorde-se que a bancada social-democrata tem liberdade de voto e alguns deputados têm votado favoravelmente os vários diplomas..A discussão parlamentar da morte medicamente assistida começou há já três legislaturas, após a entrega na Assembleia da República de uma petição com 8400 assinaturas a solicitar a despenalização da eutanásia, na sequência de um manifesto do movimento cívico "Direito a Morrer com Dignidade". Mas o tema só subiria a votos em maio de 2018. Embora todos os projetos tenham sido então chumbados, o do PS ficou a cinco votos da aprovação e ficou prometido novo round para a legislatura seguinte..A despenalização da morte medicamente assistida viria a ser aprovada na generalidade, pela primeira vez, no início de 2020. Foi o início do atual processo legislativo: três anos e três meses de vaivém entre a Assembleia da República, o Palácio de São Bento e o Palácio Ratton, sede do TC..Mesmo se Marcelo já garantiu que "não há drama" na reconfirmação, e se este é um cenário que permite ao Presidente da República não ficar associado ao diploma, dado que promulga por obrigação legal, este desfecho acaba por ocorrer numa altura particularmente tensa nas relações entre o Presidente da República e os socialistas. E não deixa de constituir um embate que, não sendo inédito, é bastante raro. De acordo com dados da Assembleia da República avançados à agência Lusa , desde 1979 os deputados confirmaram por 14 vezes leis vetadas por Belém, obrigando o chefe de Estado a promulgar. Ramalho Eanes, Mário Soares e Cavaco Silva foram confrontados com esta situação por quatro vezes (cada um), enquanto Jorge Sampaio só por uma vez foi obrigado a promulgar. Também Marcelo Rebelo de Sousa já viu um diploma reconfirmado, em 2021, sobre as alterações às regras de enquadramento do Programa de Apoio à Economia Local, longe do peso e alcance da legislação que despenalizará a morte medicamente assistida em Portugal..susete.francisco@dn.pt