Mais de cem euros ficam na farmácia

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Aos 80 anos Alzira Martinho ainda arrasta o corpo, gasto pelas agruras da vida, nas matas de Vila Chã de Sá, uma pequena aldeia às portas de Viseu. No calendário já é Outono e apesar de as temperaturas ainda serem de Verão, a idosa apenas pensa no Inverno, que está a chegar. "É preciso lenha." O resto dos dias é passado no remanso do lar ou nas idas ao hospital.

A vida "sempre foi de trabalho", conta a octogenária "Mas houve uma altura em que o corpo não quis mais e eu deixei a jorna." Alzira nunca casou e não tem filhos. A magra pensão foi a Cáritas quem a conseguiu, que ela nunca fez descontos. "Trabalhava ao dia e nunca soube o que isso era." Por isso, o valor da pensão social é uns escassos 187,18€ que têm que chegar, quando não ficam na farmácia. "Muitas vezes se passa mal, mas fome ainda não passo", desabafa.

Desde há dois anos que a idosa mora na casa da irmã. "Ela estava sozinha, começou a ter problemas de saúde e já nem fazia de comer. Fui buscá-la para aqui e cá estamos as duas. Sozinhas!", conta Maria do Carmo Martinho. Com 76 anos usufrui uma pensão de 243,32 € porque descontou 17 anos "Ainda tive bons patrões. No início, há 10 anos, ainda eram 40 contos e remediava-me com eles, mas agora com os euros já não fundem", assegura.

"É pouco dinheiro para viver, mas temos de dar um jeito e aguentar", reconhece.

As duas pensões somam 430,50 euros e com eles "é preciso pagar a luz, água, gás e telefone, que não podemos estar isoladas. No início do Outono, o tempo "é passado nas matas a granjear lenha para vencer o frio". Todos os dias as duas irmãs saem para a floresta e carregam a lenha, que "o Inverno é longo e gelado". De resto, o quotidiano das duas irmãs "tem mais de pachorrento do que de trabalho", conta Alzira. "O corpo ainda se levanta cedo e entre a lida da casa e as galinhas passa- -se o dia." Do galinheiro "vem alguma comida e ovos que ajudam a passar melhor a refeição" mas, da terra já não tiram sustento. "Já não temos força nem saúde para cuidar dos lameiros." As "terras ficaram ao abandono e agora vamos à venda e de lá trazemos o que podemos". Com "alguns terrenos semeados pelas cercanias da aldeia, se houvesse pernas e braços ainda apanhávamos a fruta que as árvores botam, mas nem para isso já podemos e por lá estão ao abandono", comenta Maria do Carmo.

No resto dos dias a televisão vai fazendo companhia. "Quando há sol ainda falamos com os vizinhos mas, nos dias de chuva, ou quando vem o Inverno, nem de casa quase saímos", remata Alzira.

O problema é a doença de Alzira Martinho. "Na farmácia fica uma fortuna, às vezes mais de 100 euros e depois temos de viver com o resto." A doença obriga-a muitas vezes a ir ao médico "Como não temos dinheiro, vamos sempre às urgências do hospital onde não se paga." O resto "é para ir comendo, vestir e calçar", comenta Alzira Martinho. No final do mês "não sobra nada e se não o levamos bem contadinho ainda falha". Então e o Complemento Solidário para Idosos? "Já ouvi falar, mas não sei tratar de nada e como não sei tenho medo", exclama Alzira Martinho. "Quando a esmola é muita, desconfiamos. Iam lá dar mais dinheiro à gente que nunca descontou?", conclui Alzira.

As duas irmãs são acompanhadas pela junta de freguesia e pela Cáritas: "Ainda se vão lembrando da gente e nos deixam algumas mercearias", desabafa Maria do Carmo.

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