Mais de 90 mil utentes sem médico de família. "É preciso muita ginástica para dar cobertura"

Há 526 914 utentes inscritos nos centros de saúde do Algarve para 378 médicos e 526 enfermeiros. É a segunda região do país mais afetada pela escassez de recursos humanos. O ACES do Barlavento é dos mais carenciados. Profissionais e utentes sentem-no bem na pele, sobretudo em época de verão. Uns e outros partilham queixas, tristezas, mas também compensações. Como preparam os cuidados primários para o verão é uma das reportagens que integram a série sobre o Algarve, que o DN publicará até terça-feira.
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O edifício é moderno. Tem dez anos e está instalado ao lado de um hospital privado. Ninguém diz que se trata de uma unidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas a placa não engana: "Centro de Saúde de Portimão". É ali a sede do ACeS do Barlavento (Agrupamento de Centros de Saúde), o mais carenciado de profissionais da região. Tem 186 059 utentes inscritos e, destes, 50 761 não têm médico.

"É preciso uma grande ginástica para dar cobertura a todos os cuidados. Precisamos sobretudo de médicos, pelo menos mais uns sete ou oito, porque em relação a outros profissionais a pandemia trouxe algo de bom, ganhámos alguns enfermeiros, nutricionistas, psicólogos e outros técnicos", afirma a diretora clínica do ACeS, Natividade Galan, que atravessou a fronteira para se fixar há 20 anos em Portugal.

Naquela tarde de fim de maio, em que o calor já apertava, a sala destinada aos utentes sem médico que procuravam uma consulta de recurso para resolver a sua situação estava calma. Ao início da tarde, apenas nove utentes esperam a chamada para se dirigirem ao balcão e se inscreverem. Duas funcionárias asseguram os serviços, mas dão conta do recado.

"À sexta-feira à tarde é assim. A maioria das pessoas já veio de manhã tentar a consulta de recurso, a segunda-feira é o pior dia", explica-nos uma das administrativas, admitindo que, por vezes, o pior do dia é a frustração de não conseguir resolver a situação de alguns utentes. "Somos insultadas, discutem connosco, mas faz parte", mas também há compensações, "quando nos agradecem pelo nosso trabalho".

Da coluna instalada na sala, ouve-se mais um nome para entrar nos gabinetes de consulta. À porta da sala, um dos utentes pede à funcionária uma máscara, "preciso de entrar e não trouxe", confessa. António vem para fazer "um penso" e assim que se inscreve é chamado, mas Jorge, de 50 e poucos anos, que se regozija de ser algarvio, de ter sido emigrante e de ter regressado à terra natal, teve de esperar três dias até conseguir uma vaga para a consulta de recurso, desabafando: "Se está a fazer uma reportagem sobre a saúde no Algarve tem muito que escrever. Eu não tenho médico de família. Tenho um problema cardíaco, estou em lista de espera desde janeiro para ser operado às coronárias no Hospital de Faro e, esta semana, tive de vir três dias às sete da manhã para conseguir uma consulta para me renovarem a baixa, porque não posso trabalhar".

Jorge cansa-se muito ao falar, apesar da máquina de oxigénio o ajudar e diz-nos: "Não puxe por mim, senão enervo-me e não me faz bem. Isto é muito mau para quem não tem médico de família". Jorge não quis que se colocasse o nome completo, nem tão pouco ser fotografado, como aconteceu com a maior parte dos doentes com quem ali conversámos. Uns por uma razão, outros por outra, mas para Jorge a razão é só uma: "O ter medo de represálias. Assim nunca mais tenho médico de família".

Quem ali trabalha, diz não ser assim. "Só não fazemos o que não podemos", afirma a administrativa. "Temos muita procura e não conseguimos dar a resposta que gostaríamos, mas o que fazemos em relação às pessoas que têm de renovar baixas ou prescrição médica ou até tratamentos, como fisioterapia, é deixá-las já agendadas e isto é uma prática transversal a todas a unidades do ACeS", explica Natividade Galan.

Até porque, garante, "este é o tipo de situação que tem mais procura nas consultas de recurso, que foram pensadas para resolver situações agudas, como uma pessoa que tem uma gripe, que não se sente bem, que tem uma dor abdominal, etc".

Segundo explica, por norma, embora dependa da disponibilidade de médicos, porque também há alguns que têm de folgar, outros que ficam doentes ou que estão ausentes, "há dois de manhã e dois à tarde. Chegamos a fazer uma média diária de 60 consultas". Outras vezes, só é possível um de manhã e outro à tarde.

Jorge queixa-se que no primeiro dia recebeu a senha 36 e "só havia 16 consultas disponíveis", no segundo foi quase a mesma coisa e só ao terceiro conseguiu ficar abaixo dos 20 utentes à procura de consulta e teve sorte. "Este centro até parece ter condições, mas isso não resolve os nossos problemas. É preciso alterar o sistema. Esta é a minha opinião. Alguém tem de olhar para a Saúde no Algarve", desabafa.

Filipe Vieira tem 39 anos. É de Lisboa, mas há 12 que vive em Portimão. O motivo que o levou ao centro de saúde foi o mesmo de Jorge, mas teve mais sorte. "Vim cá esta manhã e consegui consulta para o próprio dia, normalmente consigo. Tenho de renovar a baixa que acaba na segunda-feira", conta.

Filipe nada tem a dizer dos cuidados e do atendimento naquele ACeS, mas, admite, "talvez seja mais fácil para quem tem médico de família do que para quem não tem. Sei de situações que são muito complicadas. Ainda há dias vim cá, só havia 20 senhas para consulta de recurso e estavam mais de 50 pessoas na sala", acrescentando: "É muito complicado para os utentes, mas também para quem está daquele lado, (acenando para quem está atrás dos balcões). Todos deveríamos conseguir cuidados de saúde".

Sentada na cadeira quase ao lado está Ana Oliveira, de 41 anos, que vai tentar ainda uma consulta para o dia. "É a primeira vez que venho tentar esta consulta, mas não sei se vou ter sorte", afirma. Ana também tem médico de família, mas, desta vez, precisa de consulta e "a médica está de baixa".

Confessa nada ter a dizer do ACeS, mas defende que "pode ser melhorado. Aliás, toda a Saúde no Algarve deveria ser melhorada". Quando perguntamos o que pode ser melhorado, não hesita: "O acesso das pessoas. Há muita falta de pessoal, mas tem de haver mais disponibilidade para se conseguir resolver os problemas das pessoas". Ana sai minutos depois. "Não tive sorte. Tenho de tentar amanhã".

Rob fala português do Brasil, aguarda a mulher que veio fazer um penso numa perna, "estava marcado. Ela chegou e entrou logo". Ele e a mulher têm sorte de ter médico de família e "nada a dizer. Somos bem tratados".

O mesmo afirma Sandrine, alemã, a viver há 12 anos em Portugal. Tira a senha para ser atendida ao balcão, já explicou ao que vinha "o meu filho vem fazer uma vacina, não estava marcado, mas liguei para cá e disseram-me para o trazer quando saísse da escola". Mal temos tempo de falar, pouco depois estava a ser chamada. Pedro, assim se chama o filho de dez anos, vai fazer a vacina.

Sandrine ainda diz: "Desde que sou acompanhada neste centro de saúde, que tem corrido tudo muito bem". Pouco depois saem da sala de enfermagem, e arrancam de bicicleta para irem lanchar. Na sala ficam, os que não conseguem resolver a sua situação, os que ainda procuram uma consulta para o dia, as que já têm consulta marcada e as que se querem inscrever no centro de saúde, mas não têm a documentação completa e não o podem fazer. "Não posso fazer nada. Tem de cá voltar e trazer tudo direitinho", explica a funcionária a uma cidadã brasileira.

O relógio já marca as 16.00. As consultas que diariamente são reservadas para a Linha de Saúde 24, ainda não foram atribuídas e poderão ser dispensadas a alguns utentes, mas "temos de ter sempre consultas livres para situações que sejam encaminhadas pela linha", diz Natividade Galan. Mas nem todos os dias são assim, "há alguns em que as consultas são todas atribuídas".

A médica sabe que há dias mais difíceis que outros. "Só neste centro temos cerca de 14 mil pessoas sem médico de família, mas já tivemos mais do que isto". A preocupação agora é que, "apesar de terem entrado alguns colegas novos, e da abertura de algumas USF, que são importantes na forma como prestam cuidados aos utentes, temos muitos colegas na idade da reforma e da pré-reforma".

Quantos são ao certo, não nos consegue dizer, mas "são alguns, o que nos deixa muito preocupados", até porque, sublinha, "tivemos um aumento de utentes inscritos por causa da pandemia. No concelho de Lagoa foi algo gritante. São sobretudo utentes estrangeiros que residem cá, que desconheciam os nossos serviços, mas que se inscreveram para terem acesso ao processo de vacinação contra a covid-19".

Na sala, estão duas mulheres inglesas, que só falam a sua língua e que aguardam a consulta que conseguiram de manhã. Muitos destes utentes têm seguros de saúde e recorriam aos privados, mas "inscreveram-se, agora vêm cá e têm de ser atendidos", argumenta Natividade Galan.

O presidente da Administração Regional de Saúde do Algarve (ARSA), Paulo Morgado, diz ao DN que, apesar de a falta de recursos ser transversal a toda a região, "há zonas mais carenciadas do que outras. Os concelhos de Portimão, Silves e Albufeira são talvez os que maior carência têm de médicos de família, mas há outros mais pequenos com o mesmo problema. Se um concelho com 5000 pessoas não tem um médico, isso significa que metade da população não tem médico e é muito complicado. Neste momento, estamos a conseguir resolver algumas situações e esperamos conseguir resolver mais". O Governo abriu já este ano concurso para quatro médicos de família no Algarve, que ficaram desertos e o concurso foi encerrado.

A cobertura nos cuidados primários é de 82%. A larga maioria dos utentes - de um total de 526 914 - tem médico de família, "mas esperamos aumentar esta cobertura com novos profissionais", afirma o presidente da ARSA, admitindo que a cobertura "é muito desigual. Há concelhos em que é quase total, mas outros onde há sempre uma situação em que se tapa de um lado e se destapa do outro", havendo mesmo concelhos onde é mesmo muito difícil colocar médicos. "O caso de Silves. Os que vêm vão-se embora e isto não é algo que consigamos resolver de um dia para o outro". A taxa de "cobertura não nos satisfaz e queremos mais", afirma.

Mas se a cobertura é assim nos cuidados primários, Paulo Morgado diz ser diferente nos cuidados continuados. "Neste tipo de cuidados temos uma cobertura razoável. O Algarve é das regiões com melhor cobertura. E vamos aumentar essa capacidade com um investimento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Vão ser criadas mais 120 novas camas e duas novas unidades de Cuidados Continuados ao domicílio".

Nos cuidados paliativos, a região tem uma equipa em cada um dos três ACeS. "É o que está definido como mínimo, mas, obviamente que queremos mais, porque as necessidades da população também são cada vez maiores".

Paulo Morgado assume que o verão tem sempre de ser pensado, mas que o planeamento tem de ser feito em função do ano e que o principal problema é a escassez de recursos humanos. Esta é a nossa luta constante e a preocupação de todos os dias, porque em termos de instalações temos algumas excelentes outras menos boas, mas até nesta área ambicionamos mais".

Dos centros de saúde à consulta sazonal em Armação de Pêra

Em Portimão, no edifício do Centro de Saúde funcionam a equipa de direção do ACES, uma Unidade de Cuidados à Comunidade (UCC), três Unidades de Saúde Familiares (USF), uma Unidade de Recursos Partilhados (URP) e uma Unidade de Saúde Pública, mas o edifício começa a ser pequeno para albergar tantas valências. É ali que todo o ACeS, que integra as unidades de saúde de cuidados primários do Barlavento, de Vila do Bispo a Albufeira, passando por Aljezur, Monchique, Lagos, Portimão, Lagoa e Silves, desde Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (que funcionam como os antigos centros de saúde) às UCC, USF, URP, Unidades de Cuidados Continuados, que prestam serviço ao domicílio, é gerido.

"O ACES está organizado para responder a todas as valências dos cuidados primários, inclusive à realização de exames de diagnóstico. temos uma unidade de radiologia, para darmos uma resposta mais rápida aos utentes", explica a diretora clínica, Natividade Galan.


Das unidades de saúde nos vários concelhos só três não funcionam os 365 dias do ano. "Vila de Bispo, Aljezur e Lagos, só funcionam de segunda a sexta das 08:00 às 20.00, mas Monchique, Silves, Lagoa e Portimão funcionam todos os dias, fins-de-semana e feriados, no mesmo horário", explica. Por isso, "o nosso planeamento e organização é pensado para o ano inteiro e para os utentes que temos inscritos".

No entanto, sabem que todos os anos a resposta ao verão tem de ser reforçada. E este ano, pode não ser fácil. As entidades turísticas estimam que o número de visitantes pode ir dos 2,5 milhões aos 3 milhões. "A indicação que temos dos hotéis, porque temos sempre de saber estes dados para planear o nosso trabalho, é que a ocupação é de quase 100% nos meses de julho e agosto. As pessoas estão ávidas para ter férias e foi para este cenário que preparámos o nosso plano de contingência de verão, para darmos a melhor resposta às pessoas que vêm de fora".

O mesmo acontece nos outros ACeS, no do Sotavento e no Central. Todos se preparam para um reforço de consultas de recurso, mas a Administração Regional de Saúde definiu um plano para os cuidados primários que integra um reforço de a presença nas praias. "Vamos ter 31 postos de enfermagem em 13 conselhos para dar resposta às situações ligeiras nos locais em que as pessoas frequentam mais", explicou ao DN o presidente Paulo Morgado.

Estes postos devem começar a funcionar no final de junho e principio de julho até setembro, podendo estar abertos durante 12 horas, ou só no período da manhã ou só no da tarde. "Tudo depende das praias e da sua afluência. O objetivo é resolverem-se algumas situações agudas, como picadas de inseto, de peixe-aranha ou uma desidratação, de forma a evitar-se também a procura das urgências hospitalares. Se forem situações mais urgentes, então serão encaminhadas para esses serviços", explica-nos Natividade Galan.

O ACeS do Barlavento planeou instalar postos de enfermagem nas praias de Lagoa, Portimão, Lagos e Silves, onde "teremos um a dois enfermeiros, no caso de o horário ser de 12 horas". Ao mesmo tempo, estarão a funcionar os Serviços de Urgência Básica no Centro de Saúde de Portimão e uma consulta na extensão de Armação de Pera, uma das zonas que "chega a triplicar a população no verão".

Aqui estará a funcionar a consulta designada "sazonal", com a mesma função de uma consulta recurso, mas sobretudo para a população que está em Armação. "A extensão fica na zona principal e é muito procurada por visitantes. Funciona todos os dias da semana das 08:00 às 20:00".

Natividade Galan refere que, "embora esteja muito perto do ACeS, provavelmente, quem sai da praia com um problema não viria aqui, mas à urgência do hospital, e no local onde está a consulta tem funcionado muito bem como resposta de proximidade. Já tivemos uma na extensão de Alvor, mas a afluência era pouca e acabámos por a fechar". Os recursos são poucos. Todos o sabem, mas o planeamento é feito para tentar dar resposta a todas as situações que possam surgir. Muitos acabam o verão desgastados. É assim todos os anos até um dia, esperam. "Quando o o Algarve tiver os profissionais de que necessita", comentam ao DN.

(Leia amanhã a reportagem nas urgências hospitalares)

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