Mais de 40 anos depois de Fischer, EUA podem ter novo rei no xadrez

Xadrezista norte-americano habitou-se desde bem novo às comparações com Bobby Fischer. Agora, pode ser o sucessor do lendário génio que foi ícone da Guerra Fria
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Quando lhe foi diagnosticado um problema de hiperatividade como causa para as dificuldades de concentração demonstradas na primeira classe, aos 6 anos, e a mãe sugeriu a inscrição do filho numa escola de xadrez em Brooklyn, bairro nova-iorquino onde viviam, o pai de Fabiano Caruana desdenhou a ideia: "Estás a brincar? Ele nunca conseguirá jogar xadrez."

Louis rapidamente percebeu que estava errado. Fabiano não só ia conseguir concentrar-se no tabuleiro como iria revelar-se um raro prodígio, batendo recordes e barreiras de precocidade. A tal ponto que agora, quase 20 anos depois, pode mesmo tornar-se o primeiro norte-americano a ganhar o título mundial desde o lendário Bobby Fischer, em 1972, depois de ter conquistado o direito a defrontar o campeão Magnus Carlsen ao bater sete outros xadrezistas de topo no Torneio de Candidatos, que se disputou em Berlim ao longo de 18 dias, entre 10 e 28 de março.

De resto, desde bem cedo que Fabiano Caruana se habituou a lidar com a pesada sombra de Fischer, o génio errático que venceu o mais famoso duelo da história do xadrez ao derrotar Boris Spassky, em 1972, interrompendo o domínio soviético na modalidade, em pleno auge da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a antiga URSS.

Aos 8 anos, Caruana já era o melhor jogador sub-11 dos EUA e protagonista de reportagens nos media norte-americanos pela sua capacidade invulgar em desenvolver estratégias vencedoras no tabuleiro. Como aquela da estação televisiva CBS, em janeiro de 2001, na qual a sua mãe, Santina, confessava a desconfiança inicial do pai. "He"s no Pawn in the Game" ("Ele não é um mero pião neste jogo"), profetizava o título da reportagem, na qual o seu treinador de então - um dos mais renomados professores de xadrez dos EUA, Bruce Pandolfini - garantia que Fabiano era "um daqueles prodígios que aparecem uma vez por outra" e que "poderia percorrer todo o trajeto até chegar a campeão do mundo".

Surgiam então as primeiras comparações com Bobby Fischer, o único norte-americano que alguma vez chegou ao título de campeão do mundo. "Tem um potencial de talento para ser o melhor jogador de xadrez [dos EUA] desde Fischer", não hesitava em projetar Larry Temarkin, manager do mais famoso clube de xadrez nova-iorquino, o Marshall Chess Club em Manhattan, que conta com os nomes de Caruana e Fischer como alguns dos membros mais notáveis.

A mudança para a Europa

Daí até ao recente torneio em Berlim a vida de Fabiano Caruana deu muitas voltas. Mas sempre com o tabuleiro no centro das atenções. Filho de pais italo-americanos, nascido em Miami mas "transferido" aos quatro anos para Nova Iorque, para o mesmo bairro de Brooklyn onde viveu.... Bobby Fischer, Fabiano viu os pais decidirem uma mudança para a Europa, quando tinha 12 anos, numa altura em que já não tinham dúvidas sobre o sonho a perseguir. Dado o escasso nível competitivo nos EUA, a família Caruana mudou-se para Madrid em 2004, onde o jovem prodígio passou a treinar com o mestre russo Boris Zlotnik, e adotou a nacionalidade italiana, beneficiando do apoio financeiro da federação daquele país.

No encalço das melhores condições de preparação, Fabiano Caruana mudou-se de seguida para Budapeste, na Hungria, no início de 2007, para trabalhar sob a orientação de Alexander Chernin, outro treinador com origens soviéticas, e com o qual se tornou o mais jovem norte-americano (e italiano) até então a obter o título de Grande Mestre (grau máximo do xadrez), com 14 anos, 11 meses e 15 dias, meio ano mais novo do que Fischer o tinha conseguido em 1958.

O mecenas americano

O périplo europeu de Caruana prosseguiu para Lugano (Suíça), em 2010, onde passou a treinar com Vladimir Chuchelov, até que em 2015 entrou em cena Rex Sinquefield, um mecenas norte-americano que resolveu financiar o regresso do xadrezista, inserido num ambicioso plano de recuperar o título mundial para os Estados Unidos que envolveu também, por exemplo, a naturalização de outro jovem prodígio, o filipino Wesley So.

Foi uma espécie de resposta americana à aposta de Vladimir Putin em resgatar o domínio no xadrez que orgulhava o império soviético, num regresso do clima de Guerra Fria também aos tabuleiros. A primeira vitória do plano de Sinquefield - que criou um clube de luxo em St. Louis (Missouri) com o apoio de Garry Kasparov, o antigo campeão mundial russo e opositor de Putin que se mudou para os EUA - surgiu com a vitória americana nas Olimpíadas de Xadrez de 2016, pela primeira vez em 40 anos. Agora, Fabiano Caruana, que teve pela frente três russos no Torneio dos Candidatos, pode completar não só esse plano mas também o trajeto que lhe desenharam ainda em criança, quando no próximo mês de novembro (de 9 a 28) enfrentar o campeão em título, em Londres (embora St. Louis esteja a tentar "desviar" o evento), para uma série à melhor de 12.

Uma última jogada que vai exigir de Caruana algum do espírito imprevisível de Bobby Fischer, para tentar surpreender o norueguês Magnus Carlsen, apenas dois anos mais velho (27), campeão desde 2013 e considerado "o Mozart do xadrez".

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