Mais capitalismo apesar da Volkswagen

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Adam Smith, o qual é considerado o pai do capitalismo, assentou as suas bases sobre várias premissas. Uma é que o progresso das sociedades não depende da bondade dos indivíduos, mas sim da procura do interesse próprio, que é o caminho natural para promover o bem-estar geral. A segunda é que deste interesse faz parte a preocupação com o destino dos que nos rodeiam. Há que ler A Riqueza das Nações à luz da sua outra grande obra, A Teoria dos Sentimentos Morais, na qual defende o impulso ético do capitalismo, que consiste em dar, mais do que em receber, em procurar satisfazer as necessidades dos demais ao menor preço e com a maior qualidade possível. E também no compromisso com os semelhantes. O altruísmo e a filantropia produziram resultados, em termos de bens e serviços proporcionados à comunidade, incomparáveis com os ministrados pelo Estado, que baseia a sua assistência na obrigação através dos impostos e, portanto, destrói o sentido moral de se envolver voluntariamente no futuro da sociedade a que pertence.

Mas Smith também alertou sobre a esquiva condição humana. Esse alerta pode ser resumido na sua famosa frase: "Os negociantes de um mesmo setor raras vezes se reúnem, inclusive para entretenimento e diversão, sem que a conversação termine numa conspiração contra o público ou em algum estratagema para aumentar os preços." A fraude cometida pela Volkswagen evoca o pior da condição humana. Trata-se de uma burla deliberada, promovida a partir da direção da empresa, que fabricou um dispositivo específico para esconder o excesso de emissões contaminadoras e que falseou portanto a informação sobre as características do veículo desvirtuando o contrato que os seus compradores assinaram. Deveria o capitalismo ser submetido a uma revisão depois deste escândalo colossal? Será esta a prova de que chegou a hora de um modelo alternativo? A resposta é não.

Seria um erro que o escândalo da Volkswagen provocasse uma maior intervenção pública ou uma regulação estatal da indústria automóvel mais severa. O que aconteceu foi que os administradores da empresa transgrediram as leis básicas do capitalismo e o relevante é que estão a começar a pagar por isso. A reação dos intelectuais de esquerda ao escândalo da Volkswagen tem sido cómica. Alguns estão perplexos porque a fraude aconteceu no seio do chamado capitalismo renano, que consideravam moralmente superior ao anglo-saxónico, e ao qual se haviam rendido uma vez que o socialismo fracassara estrepitosamente após a queda do Muro de Berlim. Ao que parece, o capitalismo anglo-saxónico tem a marca indelével da lei da selva, da especulação, enquanto o de origem alemã apresentava supostamente um rosto humano, talvez pelo facto de os sindicatos terem uma presença e uma participação ativa nos conselhos de administração das empresas, o que as dotaria de um comportamento inequivocamente ético.

Não é preciso ser-se muito inteligente para concluir que este tipo de conjeturas é estúpido. O capitalismo assenta sobre o escrupuloso respeito pela liberdade individual, pela propriedade privada e pelos contratos voluntários. Qualquer transgressão destes três pressupostos é um atentado contra o livre mercado. O liberalismo não evita, como sugeria Smith, que as empresas tentem enganar alguma vez fornecedores ou clientes. Haverá sempre empresários ou particulares que tentarão defraudar, da mesma maneira que sempre haverá delinquentes que queiram apoderar-se da propriedade alheia. Mas isto não significa que o livre mercado não funcione, mas antes que os direitos das pessoas devem ser protegidos a todo o custo e que esta é a condição imprescindível para que o livre mercado dê todos os seus frutos.

Ainda que tarde, o sistema político e económico em que vivem os países desenvolvidos permitiu descobrir a atitude criminosa da Volkswagen e está em vias de castigar severamente os culpados pelos danos ocasionados. Haverá quem pense que não é suficiente para ressarcir os prejuízos dos que pouco tinham que ver com a fraude: os acionistas que tinham confiado em gestores imorais e os empregados que podem ver-se afetados pela reordenação produtiva originada pela revisão dos automóveis manipulados e pelas indemnizações provenientes dos litígios em marcha. Mas ninguém disse que o capitalismo era perfeito. Continua a ser, apesar de tudo, o melhor modelo entre os possíveis. Nele, quem as faz paga-as. Aquele que comete erros ou transgride tem de prever uma sanção, que pode vir tarde, mas virá. É esta a diferença em relação ao socialismo.

Quando caiu o Muro de Berlim, o espetáculo a que assistiu o então governo de Bona foi desolador. As agressões contra o meio ambiente tinham devastado a outra parte da cidade. Os países de Leste, sob o mandato comunista, foram pasto da contaminação e da degradação das condições de vida. A diferença é que ninguém pagava pelos crimes, de maneira que os incentivos para continuar a cometê-los eram perversos. Contra o que sugere o Papa Francisco, são o capitalismo e a economia de mercado que limitam os riscos contra o planeta e os seus habitantes e proporcionam as soluções para prevenir os abusos ou castigá-los no caso de serem cometidos.

A esquerda tem alguma razão quando argumenta que os consumidores podem sentir-se órfãos. Esperavam que os caros sistemas de regulação ou de inspeção prévia - por exemplo dos automóveis -, que são pagos com o dinheiro do contribuinte, tivessem evitado a manipulação e a fraude. Não foi assim. O caso VW servirá para os aperfeiçoar e tentar impedir que se repitam. Mas seria um erro aumentar a intervenção pública e o aparelho estatal. Sob os regimes comunistas, aquele era implacável na perseguição das liberdades, mas ineficiente tanto na promoção da riqueza como na conservação do meio ambiente. Haverá sempre empresas como a Volkswagen que empreguem mais tempo a ludibriar as leis do que a inovar e a ganhar produtividade. Isto é inerente à condição humana. O importante é que encontrem quem as ponha na ordem e recebam o castigo que merecem.

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