Maio de 68: Malraux e a dificuldade inicial em perceber o movimento dos estudantes

O ministro da Cultura de Charles De Gaulle, André Malraux, considerou as barricadas do Maio de 68 "um teatro", algumas palavras de ordem, "gracejos", e admitiu a dificuldade inicial em perceber a dimensão do movimento dos estudantes.
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"Tínhamos o sentimento de que se tratava de uma coisa particularmente superficial", disse André Malraux à revista alemã Der Spiegel, numa entrevista publicada em outubro de 1968, referindo-se à perspetiva do Governo francês, quando os primeiros protestos eclodiram em Nanterre, em janeiro.

"Afinal de contas, todos nós sabemos que a construção de uma barricada não passa de teatro (...). Se o governo tivesse querido remover as barricadas, não através da polícia de choque, mas com blindados, tudo estaria depressa [rapidamente] resolvido", afirmou nessa entrevista, publicada em Portugal pelos cadernos do jornal O Século, em julho de 1970.

Em outubro de 1968, Malraux via "os acontecimentos de maio, em França", como "o finalizar de um desenvolvimento, não um começo, do mesmo modo que a Revolução Russa foi a última do século XIX, e não a primeira do século XX".

Na entrevista à Der Spiegel, o autor de "A Condição Humana" e "A Esperança" dava por terminados os "incidentes", quatro meses depois das eleições que deram a maioria absoluta a De Gaulle, quando já tinham passado as manifestações, os confrontos com a polícia e a greve geral que mobilizara dez milhões de pessoas e paralisara o país, até meados de junho.

"No que respeita aos estudantes divertiu-me (...) o laivo surrealista do movimento. Mas nem por um segundo levo isso a sério", disse Malraux à revista alemã, tomando uma das mais conhecidas palavras de ordem como exemplo: "'A imaginação ao poder' (...) é, sem dúvida, um gracejo. O poder é detido não pela imaginação, mas por forças políticas organizadas".

"'A imaginação ao poder' não significa nada, não é a imaginação que toma o poder", prosseguiu. "A política não é o que queremos, é o que fazemos. O importante não é gritar 'viva a liberdade', é fazer com que as liberdades sejam garantidas pelo Estado. O que os jovens [contestatários de maio] esperavam, acima de tudo, era uma esperança, no meio do desconsolo que sentem, mais do que nós, e que é basicamente de natureza religiosa, porque estamos numa situação de rutura sem precedentes entre o homem e o cosmos, entre o homem e o mundo".

"Somos a primeira civilização que não se encontra de acordo consigo própria", prosseguiu Malraux, sustentando a sua expressão mais conhecida sobre o Maio de 68, que atribuiu a "uma crise da civilização". "Nas anteriores civilizações (...), existia uma identidade entre o homem e o cosmos, entre os homens e deus. Na nossa civilização, cujos grandes símbolos são as máquinas, acontece algo jamais sucedido: o homem deixou de ter qualquer importância".

Por isso, "temos de nos haver com uma juventude que não está de acordo com o cosmos", com o que a rodeia, disse Malraux à Der Spiegel. "E logo que obtenha um mínimo de conhecimentos, tanto mais se aperceberá disso. Por essa razão, temos de a tomar muito a sério. Mas não esqueçamos que houve sempre em todo o lado um movimento estudantil [contestatário], pelo menos de há cem anos para cá".

Para o antigo combatente antifranquista e resistente à ocupação nazi de França, durante a II Guerra Mundial, que ocupava a pasta da Cultura no governo gaulista conservador, desde 1958, "os acontecimentos de maio hão de ser compreendidos como a conjugação de dois fenómenos diversos: a revolta dos estudantes e o movimento grevista. Sem a conjugação de ambos, não se teria chegado ao movimento revolucionário".

Ao mesmo tempo, porém, Malraux via esta associação como algo circunstancial, que não iria durar, embora reconhecesse problemas comuns a estudantes e jovens operários. "Quando muitos jovens dizem ser contra a sociedade de consumo, não sabem o que isso é", mas são efetivamente "contra ela".

Malraux nasceu em Paris em novembro de 1901. A biografia escrita por Olivier Todd ("André Malraux", 1996) destaca a origem pequeno-burguesa, a ausência de estudos universitários e a capacidade para se afirmar, em poucos anos, acabando por privar com intelectuais da época, como Jean Cocteau e Max Jacob, combater nas guerras civis da China (1927) e de Espanha (1936-1939), resistir ao nazismo, assumir a proximidade a Moscovo e a Pequim, antes da Revolução Cultural, e atingir a liderança do Ministério da Cultura, em 1958, com a afirmação do 'gaulismo', na sequência dos levantamentos de Argel, nesse ano, que levariam à independência.

O filósofo Jean-François Lyotard disse que Malraux "tinha uma paixão por De Gaulle, em quem via o porte de um Napoleão". Em "Signé Malraux" (1996), define-o como "alguém que se punha sempre na primeira linha, no primeiro plano", assumindo "os maiores riscos, não apenas físicos, mas intelectuais e morais".

Para o autor de "A Condição Pós-Moderna", porém, esta atitude não era heroísmo. "É simplesmente a visão de que é preciso tratar a vida como um livro. É preciso escrevê-la".

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