Maio de 68: Antígona e Letra Livre mantêm inconformismo e resistência editorial

As editoras Antígona e a Letra Livre, fundadas anos depois do Maio de 68, assumem a influência desse momento histórico na sua génese, pela via das leituras e da cultura dos seus editores, mais do que do próprio acontecimento.
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A Antígona foi fundada em 1979 e todos os acontecimentos anteriores tiveram influência na sua formação, disse à Lusa o criador e rosto do projeto ao longo dos anos, Luís Oliveira.

"Sendo o Maio de 68 uma das maiores convulsões históricas do século XX, teve influência na minha formação, ideias e energia", afirmou, confessando ser sempre guiado por um espírito de inconformismo, desobediência e inquietação.

Atualmente, com cerca de 300 livros publicados, sente que cumpriu "cabalmente" a ideia de uma editora refratária, e afirma que "essa inquietação não parou".

No seu catálogo tem autores como Raoul Vaneigem e Guy Debord, que foram os dinamizadores principais desse projeto do século XX, chamado Maio de 68, que, para Luís Oliveira, é o mais radical e completo, em termos de crítica social.

A ideia da Antígona já vinha de trás, dos rastos deixados pelo Maio de 68, embora só viesse a ser constituída mais de uma década depois.

Luís Oliveira teve uma pequena livraria em Santarém, entre 1970 e 1973, que vendeu para vir para Lisboa - com o dinheiro da venda e a ideia de abrir uma nova livraria.

Chegado à capital, deambulou pela cidade com escritores como Herberto Helder e António José Forte.

"O Café Central era o nosso Forte", recorda o editor, lembrando que nesses seis anos que medeiam a venda da livraria de Santarém e a abertura da Antígona, fez "uma preparação central com esses homens" e leu "centenas de livros no campo da subversão".

Foi também nesse período que conheceu Eduardo Roth, um venezuelano, mais velho, que tinha conhecido Guy Debord em Paris, e que emanava "uma energia" que serviu a sua vida e o momento, recorda.

As aventuras que viveu com esse amigo, constituíram "uma experiência intelectual e prática da vida" que o marcaram "no campo refratário, da transgressão", embora a "ideia da desobediência" e a convicção de que "obedecer é morrer" o acompanhem desde a infância.

O projeto Antígona "entroncava nessas experiências todas históricas" e o "programa começou a desenhar-se antes da abertura da editora, "a partir de livros" que leu e de "experiências marginais de vida".

O próprio símbolo -- uma cara a deitar a língua de fora -- simboliza uma forma refratária de existência: deitar a língua à sociedade.

Fizeram a primeira publicação de "O banqueiro anarquista", de Fernando Pessoa, "nas barbas dos detentores dos direitos", desafiando a legalidade, numa atitude refratária, e também o "Discurso sobre a servidão voluntária", "um dos textos mais subversivos", com 500 anos, da autoria de La Boétie, que a certa altura escreve "é preciso libertarmo-nos dos nossos libertadores".

Quase 40 anos depois da criação da editora e meio século após um dos mais importantes movimentos que a inspirou, Luís Oliveira diz que "há um princípio e um meio, mas ainda não há um fim: Cá estou eu para empurrar palavras contra a ordem dominante".

Também a editora Letra Livre assume as influências do Maio de 68, não na sua génese, concretamente, mas nas pessoas que a fundaram: três livreiros desempregados que desejavam manter-se na atividade livreira e dispor de autonomia para vender, divulgar e editar os livros que consideram importantes.

"Nesse sentido, foi um projeto que respondeu às nossas necessidades, umas décadas após esse tal Maio. A influência do Maio de 68, a existir, deu-se por via das leituras, da cultura e do conhecimento pessoal que tivemos de pessoas que estiveram envolvidos diretamente nos acontecimentos da época, seja em França, na América Latina e em Portugal, na crise de 69 de Coimbra ou no nosso verdadeiro Maio de 68, que foram os meses que se seguiram ao 25 de Abril de 1974", disse à Lusa o editor Eduardo de Sousa.

As edições da Letra Livre, centradas nas humanidades, têm procurado dar a conhecer livros e autores "fora do quadro do pensamento hegemónico, que é essencialmente burguês e liberal", afirmou, explicando que, nesse sentido, a editora mantém "um espírito herético, inconformista e libertário que tem raízes culturais e históricas".

Mas essas raízes não estão fixas no Maio de 68, porque já antes tinham existido barricadas nas ruas de Paris, e a rebeldia e o inconformismo não foram inventados pelos jovens parisienses em 1968, defende.

"Como conheci operários portugueses e espanhóis que estiveram envolvidos nas manifestações e barricadas de Paris e que em junho voltaram para as obras, quando os estudantes foram de férias, tenho uma visão um pouco diferente desse tal inconformismo do Maio de 68".

Entre as obras que a Letra Livre publica, e que tiveram influência no movimento de estudantes, contam-se Marcuse, Debord, Vaneigem e Lefebvre, ou Fanon, entre outros, mas essa opção editorial tem mais a ver com o interesse dos editores "em difundir o pensamento crítico contemporâneo".

Eduardo de Sousa sublinha que algumas dessas obras, como "Arte de Viver para a Geração Nova", de Raoul Vaneigem, membro da Internacional Situacionista, e "O Homem Unidimensional", de Herbert Marcuse, "tiveram de facto influência direta no discurso radical dos anos 60", mesmo que não se tenham esgotado nesses acontecimentos e "mantenham toda a sua pertinência na crítica do capitalismo e da sociedade de consumo atual".

São livros que se vendem pouco, admite, mas o objetivo não é constar das listas dos 'bestsellers', mas antes "difundir obras que ajudem a pensar a nossa condição humana e a sociedade em que vivemos", até porque "é fundamental manter esta resistência editorial contra o nosso tempo".

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