Macron e as impossibilidades

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Na inusitada entrevista em que declarou a NATO morta, em 2019, o presidente da França disse algo invariavelmente menos recordado. À conversa com a sua biógrafa, Emmanuel Macron defendia então uma aproximação ao regime de Vladimir Putin. "Se queremos construir paz na Europa e reconstruir uma estratégia europeia autónoma, temos de reconsiderar a nossa posição com a Rússia", afirmava o chefe de Estado francês. Passaram-se três anos. A Rússia invadiu um país soberano, de fronteiras internacionalmente reconhecidas, sustentada numa retórica genocida e em práticas de guerra criminosas. O resultado da tentativa de rapprochement de Macron foi tudo menos bem-sucedido. Alguma cautela ou reserva seria o mínimo após tamanho fracasso político. O presidente francês, no entanto, discorda.

Ainda ontem, por exemplo, alvitrava que "não devemos humilhar a Rússia para que, no dia em que a guerra acabar, consigamos construir uma saída por meios diplomáticos". O governo ucraniano, naturalmente, não apreciou o apelo macroniano e ripostou, respondendo que "falar em não humilhar a Rússia só humilha a França". "É a Rússia que se está a humilhar", rematou o MNE da Ucrânia.
Dispensando a retórica, é difícil discordar de Dmytro Kuleba e dificilíssimo disfarçar alguma perplexidade perante as afirmações de Macron. Uma coisa é manter os canais de comunicação funcionais entre o Kremlin e o Ocidente. Outra, muito diferente, é protagonizar uma doutrina de appeasement em pleno conflito. A um homem que pretendia reaproximar a Europa de Moscovo e assistir à parada em memória do Exército Vermelho ao lado de Putin, e que já foi forçado a retificar declarações sobre a integridade territorial ucraniana, recomendava-se outro tom. Macron, visivelmente, não está interessado nele. Os primeiros cem dias da guerra demonstraram, mais uma vez, como é mais um conceptualista do que um estadista propriamente dito.

Ele, que tanto proclama a necessidade de uma "soberania europeia" desde que surgiu na cena política, reage a uma ameaça direta a essa soberania recomendando cedê-la ao invasor. Ele, que apregoa repetidamente a "autonomia estratégica" como prioridade para a Europa, falhou rotundamente no momento histórico que mais carecia de liderança rumo a essa autonomia. A demora na aprovação do sexto pacote de sanções, a cedência às exigências da Hungria e o travão a um eventual sétimo pacote comprovam que os conceitos de Macron não passam disso mesmo: conceitos. A realidade suplantou os chavões em pouco mais de três meses. A "soberania europeia" está a ser defendida por homens e mulheres que nem cidadãos da União são. A "autonomia estratégica" ficou circunscrita ao interesse nacional de cada Estado-membro.

O apelo à "não-humilhação da Rússia" é mais uma impossibilidade que Macron propõe, não despida de predicados racionais e alguma memória.

A proclamação do Império Alemão em Paris, em 1871. A assinatura do tratado de Versalhes, em 1919. O declínio russo na década de 90, após a dissolução da União Soviética. Todos eles são momentos históricos que fomentaram revanchismos e caminhos para a guerra, para a tirania ou para ambas. Emmanuel Macron receia que o Ocidente repita esses erros no final da guerra na Ucrânia. A questão é: o que seria suficiente para a Rússia não se sentir humilhada? Ganhos territoriais? O povo ucraniano nunca perdoaria Zelensky. Um compromisso de não-adesão à NATO? Não é impossível. Um adiamento da entrada na UE? É o mais provável.

Mas, no fim do dia, como é que a sobrevivência da Ucrânia pode não ser uma humilhação para o homem que disse que ela não existia?

Talvez Macron saiba responder.

Ou não.

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