Macondo existe e as suas gentes também
O sol aperta desde que nasce. Ao meio-dia, o calor até a vontade esmaga. Só os habitantes locais, os bananais e as robustas palmeiras africanas parecem suportar sem esforço o clima sufocante da região que alberga Aracataca, a Zona Bananera e Ciénaga, alguns dos territórios onde teriam vivido os Buendía e cujas gentes serviram de inspiração ao romance mais aclamado de Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão (mais de 30 milhões de exemplares vendidos em 35 idiomas diferentes desde que foi publicado em 1967, há 40 anos).
Os locais não crêem que Deus tenha favorecido o Nobel colombiano com uma portentosa imaginação. Tudo o que escreve no romance, que o autor mexicano Carlos Fuentes comparou a Dom Quixote, está nas entranhas dessas terras bananeiras, férteis e ardentes da região nortenha de Magdalena, habitadas por homens de sangue moderado, moral distraída e corpo folião.
As suas mulheres têm uma beleza cativante, são permissivas e trabalhadoras, dispostas a olhar para o outro lado e a perdoar os muitos pecados de alcova dos seus machos. Gabo, dizem os seus conterrâneos, limitou-se a relatar com um estilo literário sublime o que viu na sua infância e juventude ou o que lhe contaram.
"El Perro Negro", que apenas leu algumas passagens da obra, está convencido dessa teoria e pensa que ele próprio é um exemplo palpável. Como parte e essência daquela paisagem, o clima abrasador nunca lhe diminuiu nem um pouco a paixão transbordante nem lhe alterou a rotina amorosa. Teve 39 filhos, mas não se conforma com a extensa prole com que Deus o presenteou.
Gosta de números redondos e, além do mais, sente que no seu coração ainda há lugar para outro amor. Aos 82 anos não perde a esperança de chegar aos 40 rebentos antes que a morte o leve.
Por isso rondou durante 12 longos meses uma jovem da sua tórrida Aracataca natal, com o ímpeto de um adolescente perdidamente enamorado. Levava-lhe pequenos presentes ao local de trabalho, dizia-lhe piropos, oferecia-se para carregar o que ela transportava e cantava-lhe serenatas nocturnas.
Mas ela não cedeu. Ainda assim, "El Perro" não perdeu o sorriso nem abandonou o seu propósito. Está convencido de que aparecerá outra rapariga bonita disposta a aceitá-lo. "É claro que ainda vou tocar a outras portas. Mas sou ajuizado e vivo com a mesma mulher de toda a vida", comenta, para acrescentar que também foi fiel às outras duas senhoras com as quais tem convivido durante décadas de forma aberta, à luz de todos os seus conterrâneos. "Por cá é costume", afirma tranquilo.
Várias mulheres.
Da mesma forma que fazia Aureliano Segundo, que dividia a sua vida entre a esposa legítima, a frustrada citadina Fernanda, e a sua amante, Petra Cotes, "El Perro Negro", alcunha que lhe deram a ele, Toño Jaramillo, devido a uma noite de borga em que se cruzou com ele um cão dessa cor (na Colômbia chama-se perro aos mulherengos), soube repartir o seu tempo entre as diferentes mulheres com as quais partilhou a existência, com uma equidade salomónica.
Alicia Ellis já faleceu, mas enquanto andava sobre a Terra recebia o seu amante todas as noites depois do jantar e tinha-o com ela até às duas da madrugada. Aí deixava essa cama para se meter na de Juana Bautista e, quando despontava o sol, regressava ao lar oficial para tomar o pequeno-almoço com Gloria Escalante e o resto da família.
Para além destas, teve relações com Romelia Borrego, Jenis Gómez e Alicia Urbina, e enumera-as com a certeza de não deixar nenhuma de fora e insinuando que as quis por essa ordem. Cita cada nome com carinho, como querendo deixar claro que nenhuma foi uma aventura passageira; aquelas que o foram abandonaram faz tempo a sua memória.
"Há mulheres que vigiam os passos de um homem. Não há brigas com as minhas. Quando saio para outra casa, Gloria sabe que vou para lá. Se precisar de alguma coisa, manda-me chamar. De manhã vou ter com as outras e faço uma ronda. 'Dormiste bem?', pergunto-lhes. É bom que sejam assim porque sinto-me bem, sem brigas", diz "El Perro".
Às vezes deixava-as a todas para andar em borgas em casas alheias. Uma das que gozava de maior prestígio em Aracataca e arredores era a de Dona Juana Bolívar, a qual faz parte da alma macondiana.
A maioria das festas começava sem um motivo concreto, apenas porque alguém levava uma caixa de garrafas de rum de cana ou de whisky e terminavam vários dias mais tarde, quando os homens esgotavam as existências.
Amores furtivos.
Juana não teve filhos mas teve um marido, funcionário municipal, que a amou e a respeitou. Para preencher os seus dias, dedicou uma parte do seu coração romântico a dar guarida a amores furtivos, se bem que hoje, do alto dos seus 86 anos, prefere falar da excelente anfitriã que foi e da decência das mulheres que vinham para alegrar as pândegas.
"Vivo há 57 anos nesta casa que antes era feita de barro e canas bravas", recorda a mulher, enquanto segue pelo canto do olho a partida de dominó que joga todas as tardes no seu terraço com dois amigos de longa data. Chegou a Aracataca com a família ainda menina, procedente de uma aldeia da mesma região, para aquilo que era então um povoado que mexia.
"Havia uma anarquia muito grande com o dinheiro; na época havia muito, muito, recebiam-no aos pacotes e seguiam para a farra", recorda com um sorriso que mostra uma dentadura gasta. "O que desbarataram naqueles tempos faz-nos falta hoje."
Quando os homens apareciam no umbral da sua porta dispostos a fazer uma boa pândega, Dona Juana punha-se a cozinhar como louca as vitualhas necessárias para saciar a fome dos convidados. "Fazíamos sancocho (cozido típico colombiano) com tudo: carne de porco, de vaca e de galinha; preparáva-mo-lo quando lhes apetecia, mesmo que fosse à meia-noite."
A casa melhorou e foi crescendo com o passar do tempo, como a de Úrsula, a inesgotável matrona de Cem Anos de Solidão, sem nunca chegar a transformar-se na mansão dos Buendía, cuja sala de jantar podia albergar mais de 20 comensais comodamente sentados.
Mas era espaçosa, o suficiente para acolher a todos os que chegavam ao improvisado festejo, incluindo os grupos musicais que os animavam ao som de vallenatos acompanhados por acordeões, guacharacas ou guitarras.
E, o que era ainda mais importante, estava aberta à vida dupla dos homens, como a que tinha Petra Cotes, a eterna amante do Macondo de García Márquez. "Os homens traziam as suas amigas, que não eram aquilo que está a pensar. A casa enchia-se de rumba e quando alguém se cansava, estendíamo-lhe redes; dormiam e quando acordavam voltavam a farrear."
Era tanto o dinheiro que corria nos anos em que as companhias bananeiras norte-americanas invadiram a região com as suas empresas e por ela espalharam um progresso ilusório, que havia aqueles que "punham o dinheiro no pátio a apanhar sol para que não humedecesse", porque não era costume guardá-lo nos bancos. "Para dançar a cumbia, em vez de levarem uma vela na mão, queimavam dólares", explica Dona Juana.
"A terra estava tão boa que vinham de comboio para a farra rapazes elegantes de Ciénaga (a povoação que fora mais rica e importante que a própria capital do distrito de Magdalena)", acrescenta a senhora. Tal como acontecia em Macondo, quando chegavam forasteiros de todos os cantos da província, até que a doença da insónia, a guerra e os quatro anos de chuva ininterrupta, entre outras tragédias, a sumiram num abandono irremissível.
Aquilo que Aracataca e toda a região bananeira sofreram com a saída das companhias bananeiras norte-americanas é o mesmo que Dona Juana sente às vezes, desde que enviuvou em 1974 de um marido que nunca procurou outras mulheres para que lhe fizessem os filhos que ela não lhe pôde dar.
Dona Juana não deixa descendência que siga a sua tradição, mas Toño Jaramillo, "E l Perro Negro", tal como o coronel Aureliano Buendía, deixa uma quantidade de jovens robustos e de feições decalcadas das do progenitor e tão mulherengo como ele, pelo menos de alma.
O clã não faz peixinhos de prata artesanais mas sim móveis e portas. O patriarca e oito dos seus filhos, de diferentes mães, trabalham na oficina de marcenaria que abriu vários lustros atrás. Outros dois também exercem o ofício, mas em povoações próximas.
Todos eles compreendem a fogosidade do pai e se não o imitam é apenas por uma questão económica. "Os Jaramillo têm o sangue doce, esse apego que nos legou o meu pai, e a verdade é que para nós é fácil conseguir mulheres. Alguns dos meus irmãos têm duas, outros três, eu não tenho nenhuma porque requer muito dinheiro, porque é preciso mantê-las bem a todas, olhar por elas", explica Toñito. "O meu pai inculcou-nos bons princípios e valores, nenhum de nós deu para o torto, não há nenhum drogado nem maricas", acrescenta.
Também legou a vários deles uma voz portentosa para que o acompanhem com o seu grupo de música cubana que percorre uma região que abarca os municípios de Fundación, Zona Bananera, Aracataca e outros próximos de Ciénaga Grande.
"Eu gosto de todas por igual", explica o patriarca, para acrescentar que entre elas se respeitam, não há ciúmes ou, pelo menos, não mostram as unhas nem apresentam reclamações pelas suas ausências. "Juntaram-se só para rezar, em enterros, mas não conversam umas com as outras." Ele também não exige tanto, basta-lhe que cada uma respeite o espaço das demais.
Os filhos, pelo contrário, longe de estarem distanciados, consideram-se irmãos unidos; falam dos Jaramillo com orgulho, gostam uns dos outros e ajudam-se mutuamente. Há três Antonios - o quase grande, Toñito e Toño o polícia -, dois Marcelinos - o pobre e o rico - e meio livro de santos masculino e feminino para os restantes.
O pai do clã compôs inclusive uma canção que serve de advertência para os maridos cautelosos: "Cuidado, cuidado, que vem aí o Toño, arrebata-a (à esposa) e nunca mais a voltas a ver."
Galos de luta
Também não lhes convinha perder de vista Pedro Terán, outro galã e farrista empedernido. Ao cumprir os oito anos, já tinha galos de luta, uma paixão que o passar do tempo não diminuiu.
Lamenta que o número de adeptos esteja a decair, tal como as farras de vários dias de Dona Juana e tantos outros costumes da zona que Cem Anos de Solidão difundiu por todo o planeta. "Eu tive os melhores galos da região, Patapalo, El chino e Mike Tyson, ao qual chamei assim porque matava com uma só mordida, era um galo assassino, e ainda tenho muitos bons."
Aos que lhe restam, mantém-nos como crianças mimadas no pátio da sua casa de Aracataca, protegidos por matas e árvores do calor que abrasa a povoação, cada qual na sua jaula. Dirige-lhes palavras carinhosas, alimenta-os bem, treina-os com luvas de cerda, corta-lhes as plumas como um cabeleireiro de salão.
Agora não tem mais de cinco ou dez, mas chegou a contar cinquenta cordas, como chamam aos cercados, o que significa que superavam bastante a meia centena de animais. A sua corda, "que é como se fosse o seu ferro nos touros", chamava-se A Campeã.
No romance de Gabo, José Arcadio Buendía tem de abandonar a sua terra natal, razão que o leva a fundar Macondo, depois de matar Prudencio Aguilar, um dono de galos de luta arrogante que o humilha perante todos como vingança por o seu animal ter saído derrotado numa luta. O patriarca atravessa-lhe a garganta com uma lança, como resposta à sua afronta.
A Pedro Terán, que conhece bem o romance, sempre lhe pareceu lógica essa reacção. "É que nisto dos galos festeja-se e não se faz pouco de ninguém porque, se assim não for, pode haver mortos. Um dia um dono de galos que tinha ganho uma luta, principiou a fazer pouco do rival. O perdedor começou a sacar o revólver, mas acalmámo-lo. Outro dia, o filho do negro Morón, um conhecido, matou um rapaz porque este lhe disse antes da luta: 'Vou ganhar a esse teu galo.' O que aconteceu e, ao terminar, procurou-o para lhe dizer: 'Tinha-te dito que o meu galo ia matar o teu.'
O filho de Morón não se aguentou porque não gostou dessas palavras e matou-o. A seguir, a guerrilha, que andava então por aqui, queimou-lhe as cordas (cercados) com uns 400 galos."
Na sua época de glória, Pedro Terán caminhava de cabeça erguida, ufano, era um farrista inesgotável, bebedor sem fundo, cantante apaixonado. "Eu era elegante no caminhar, calçava botas finas, usava um chapéu que parecia de um coronel, uma boa camisa. Ficava-me bem o uniforme, igualava- me aos grandes.
Os galos são como os touros, morrem pela sua lei. E os donos, como os que têm touros de lide, tipos honestos. Antigamente dizia-se "palavra de dono de galos, porque isso valia, os galos eram só para gente honesta, não havia bandidos", recorda com nostalgia. Mas hoje, o interesse pela luta de galos desvanece-se como agonizou durante lustros a glória dos Buendía.
Também já não há notícias de mulheres que deram à luz bebés com cauda de iguana, quando não era de porco, como asseguram que acontecia na região quando se casavam entre familiares.
Restam apenas umas poucas mansões decrépitas em Ciénaga e na Zona Bananera, decoradas pelos escassos móveis diferentes que a decadência não arrastou para antiquários de Bogotá; o mesmo acontece com o comboio, destinado em exclusivo a transportar o carvão das multinacionais que substituíram as grandes bananeiras.
Inclusive a Ciénaga Grande agoniza devido à depredação humana e o casario Macondo, a antiga herdade com cujo nome Gabo baptizou o seu povoado imortal, definha envolta na pobreza que assola a região, a mesma que enterrou um território de ficção que foi mais real do que lendário. |
Exclusivo El Mundo/DN. Traduções livres do texto original de García Márquez