Lula supera Bolsonaro até no voto evangélico
"Com este cabelo branco, "tou com jeitão de pastor, e topo também ser padre, é só a igreja católica acabar com o celibato", disse Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), numa das primeiras entrevistas, à Televisão do Trabalhador, depois de sair da prisão. Lá, na cela, sem acesso a TV a cabo, disse ter investido horas a fio nos programas de pastores evangélicos que ocupam boa parte da programação dos canais brasileiros e ficado impressionado com "a capacidade de comunicação" deles. Na sequência, deu uma ordem ao partido: é preciso investir neste segmento.
Os frutos vieram um ano depois em forma de sondagem do Instituto Datafolha: com larga vantagem geral sobre Jair Bolsonaro (sem partido) - soma 41% das intenções de voto contra 23% do presidente -, vence até no suposto terreno do adversário, o voto evangélico, por 35% a 34%.
Na campanha de 2018, o hoje inquilino do Palácio do Planalto, apesar de católico, batizou-se às mãos do pastor Everaldo, presidente do Partido Social Cristão, nas águas do rio Jordão, em Israel. E nas redes sociais, explorando o conservadorismo evangélico, bolsonaristas lançaram fake news sobre o rival Fernando Haddad (PT), a mais célebre das quais acusando o candidato de pretender distribuir biberons em forma de pénis para combater a homofobia.
Deu resultado: 69% dos evangélicos votaram em Bolsonaro e só 31% em Haddad, ainda segundo o Instituto Datafolha. Um resultado fora da curva, se tivermos em conta que, em 2010 e 2014, a vencedora Dilma Rousseff somara 51% e 47% dos votos desse segmento religioso, e em 2006, Lula fora o preferido de 59% dos protestantes do Brasil.
"Vale lembrar que o Lula sempre contou com o apoio dos evangélicos, tanto da base, como do bispo Edir Macedo ou do pastor Silas Malafaia, lideranças que nunca se afastaram do poder desde a redemocratização, porque têm, sobretudo, interesses empresariais, que apenas se misturam com interesses religiosos", diz ao DN Christina Vital, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense e autora de "Religião e Política: Medos Sociais, Extremismo Religioso e as Eleições de 2014", livro que previa a tomada do Planalto pelos evangélicos.
"Essa base evangélica, entretanto, é a classe socioeconómica C e D, com renda per capita baixa, um público que sempre votou PT e Lula e que votou Bolsonaro em 2018 em razão das promessas de segurança, emprego e combate à corrupção, problemas que afetam muito a população mais pobre", assinala.
"Essa população tem sofrido muito com o desgoverno de Bolsonaro, porque não basta o plano da narrativa, as pessoas estão interessadas na melhoria concreta das suas vidas, independentemente de ideologias".
"E a condução de Bolsonaro na pandemia prejudicou muito a relação dele com a sociedade em geral, não apenas pela ineficiência, mas pelo discurso de provocações, de sarcasmos, de mentiras, logo, a população que mais depende do sistema público de saúde, relaciona a gestão de Bolsonaro ao agravamento das suas condições", conclui a académica.
O jornalista e escritor Marcelo Santos, evangélico há 30 anos e membro da Comunidade Cristã da Zona Leste, em São Paulo, sublinha que os protestantes "são povo também". "E um povo, na sua maioria, pobre e preto, que sofre com a violência policial, sofre com o desemprego e a falta de moradia", destaca.
Segundo Santos, "há um movimento, que ainda é tímido, até porque o bolsonarismo é um conceito novo, historicamente, que entende que o bolsonarismo é o oposto aos ensinos cristãos de justiça, acolhimento, amor, redenção e não violência".
"Jesus manifestava misericórdia entre os oprimidos. É praticamente impossível ver Jesus nas palavras e nos gestos do presidente Bolsonaro. O bolsonarismo começa a causar cada vez mais aversão entre os crentes, que já não conseguem encaixar ideias como a pregação do ódio, da violência e da mentira, embutidas no bolsonarismo, com a mensagem de Jesus", continua.
No entanto, admite, "há uma narrativa que faz com que muitos evangélicos ainda votem em Bolsonaro por acreditar que, ao menos, ele não é de esquerda porque a esquerda representa, no ideário plantado nas igrejas, pessoas que são contra a fé cristã e são contra os dogmas morais".
"Outra questão muito importante é que os principais líderes das principais igrejas continuam apoiando o governo Bolsonaro. As cinco principais igrejas no país são as Assembleias de Deus, Batistas, Congregação Cristã, Universal e Quadrangular. Dessas, apenas a liderança da Congregação, que possui como regra que lideranças não podem ser candidatos políticos e que nos cultos não se pode fazer propaganda por nenhum candidato ou partido, não expressa apoio explícito à Bolsonaro".
Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, celebrou o casamento de Jair e de Michelle Bolsonaro, é presença constante no Planalto e no Alvorada e tem, só na rede social Twitter, 1,4 milhões de seguidores. "Mas, por mais que pastores como Malafaia consigam amplificar suas vozes através de seus aparatos mediáticos, são cada vez menos relevantes", diz Santos, citando um levantamento feito pelo grupo de estudos de media, religião e cultura da Universidade Metodista de São Paulo durante as edições de 2016 e 2017 da Marcha para Jesus, em São Paulo.
"Esse estudo apontou que a representatividade do pastor Silas Malafaia está em decadência: em 2016, 58,6% diziam se sentir representados ou muito representados pelo pastor, em 2017, esse número foi para 34,9%", finaliza.
Gladiston Amorim, mais conhecido como Dinho, é pastor da Igreja Ministério Atos de Justiça, em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Ele discorda da vantagem, ou empate técnico, de Lula e Bolsonaro entre evangélicos e alinha pelo descrédito do instituto de sondagem.
"Não vi a pesquisa do DataFolha mas certamente é manipulada, como todas as anteriores. Aliás, segundo o Datafolha e os demais institutos de pesquisas, Fernando Haddad seria o presidente do país", ironiza.
"No segmento evangélico, não conheço 5% de eleitores do Lula, e conheço milhares evangélicos, de vários segmentos", diz o pastor Dinho, que foi notícia no DN, em janeiro, por ter escapado da morte por covid-19. Na ocasião, afirmou: "Respirava, o coração batia, os rins ainda funcionavam, mas os outros órgãos estavam parados". Mudou, então, radicalmente a sua percepção em relação à doença: chamar-lhe gripezinha, diz, "é uma bobagem". No entanto, poupa, Bolsonaro, o autor da expressão: "Ele está aprendendo, como outros políticos de outros países, como Portugal, estão aprendendo, não é justo responsabilizá-lo".
Para o pastor Dinho, "as ruas também mostram enorme distância entre os apoiantes do Bolsonaro e do Lula". "Quem viu as manifestações do Primeiro de Maio ou o passeio de moto do domingo passado de dia 9 ou as carreatas de dia 15 em favor de Bolsonaro não viu manifestações populares pró-Lula". "Só os institutos de pesquisa insistem em não enxergar a verdadeira opinião popular", conclui.
Por outro lado, em artigo no jornal Folha de S. Paulo, o pesquisador Mathias Alencanstro escreve que "a crise em África pode aproximar IURD e PT". "Primeiro presidente eleito com voto em massa de uma comunidade religiosa, Jair Bolsonaro prometera colocar o Estado a serviço de pastores e bispos (...) A Igreja Universal via no ministério das Relações Exteriores um veículo para ampliar a sua transnacionalização e em Bolsonaro o melhor embaixador para os seus interesses", começa por defender o académico.
E conclui: "A chegada do ministro Carlos Alberto França, que tem resistido à invasão do ministério por agentes não estatais, praticamente sepultou o projeto de uma diplomacia evangélica, e Edir Macedo já começou a tirar as consequências desse fiasco. Ele sabe que Lula, o único responsável político em condições de reconstruir a ponte entre Brasil e África a tempo de salvar os interesses da Igreja Universal, também é o principal rival de Bolsonaro nas eleições de 2022".
Como sublinhou Lula naquela entrevista à Televisão do Trabalhador, "pergunte ao Edir Macedo quem tratou os evangélicos melhor". "Mas não vai ter esse negócio de me batizar em Israel não, nunca neguei que sou católico".
NÚMEROS
35%
Percentagem de votos, segundo sondagem Datafolha, dos segmento evangélico em Lula em 2022. Bolsonaro soma 34%
69%
Número de evangélicos que afirmaram ter votado em Bolsonaro, em 2018
59%
Número de evangélicos que afirmaram ter votado em Lula, em 2010