Lula negoceia com os "carrascos" de Dilma mas esquerda entende
Para quem vê a política do Brasil de fora, a notícia de que Lula da Silva, pré-candidato à eleição presidencial de 2022, se vem reunindo com partidos que conspiraram para a queda de Dilma Rousseff em 2016, como o próprio MDB de Michel Temer, soa, no mínimo, a traição. Quem a vê de dentro, acha-a inevitável, ainda para mais no quadro da luta eleitoral com o presidente Jair Bolsonaro.
"A portugueses, habituados a outro sistema político, chama a atenção, de facto, o amplo leque ideológico dos interlocutores do Lula, eles são de quase todas as franjas eleitorais, exceto a extrema-direita, mas isso acontece porque o legislativo brasileiro é muito fragmentado, com 24 partidos na Câmara e 16 no Senado", explica ao DN Mayra Goulart, professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"O presidente brasileiro, seja ele quem for, vai, por isso, ter sempre um apoio legislativo muito minoritário, logo, precisará de negociar com muitos segmentos para garantir maioria parlamentar", continua.
"Todos os governos do PT, aliás, foram formados por coligações amplas, incluindo MDB, de direita, ou PR, hoje um partido evangélico, então não é surpresa nenhuma estes acordos e reuniões de agora".
Ouvido pelo DN, o líder parlamentar do PT na Câmara dos Deputados recusa chamar as conversas com a cúpula do MDB e até ministros de Temer, o vice-presidente que puxou o tapete a Dilma e assumiu a chefia de estado há cinco anos, de "trairagem", uma expressão da gíria local para "traição".
Segundo José Guimarães, que participou em quase todas as conversas com lideranças nacionais e locais que votaram pelo impeachment, "o Lula tem dito reiteradamente que quer pacificar o país em torno de um programa de reconstrução nacional sem olhar para trás". "Essa é a ideia dele: dialogar, sem nunca esquecer a defesa intransigente de colocar os pobres no orçamento do Brasil".
"Se nessas conversas há muita gente que votou pelo golpe, quem no fundo está a fazer a autocrítica são eles ao apostarem no PT...", sublinha.
"O PT tem um caminho programático de aliança com partidos de esquerda, como PSB, PCdoB, PSOL, mas também com setores desses partidos, como o MDB, então o Lula tem de conduzir tudo com muita sensibilidade, no fio da navalha, fazendo alianças sem, no entanto, jamais mudar de lado".
"O país está depauperado, sem rumo e Lula é a esperança e é a liderança", conclui o líder dos deputados "petistas", como são chamados os apoiantes do partido.
O DN quis ouvir também as bases "petistas". Será que elas entendem estas alianças com protagonistas do impeachment (ou golpe, como preferem nomear)?
Anna Zappa, historiadora de formação a trabalhar na área de marketing e militante do PT de São Paulo, defende a posição de Lula, atendendo à conjuntura. "Não sou do tipo de "petista" que concorda com tudo o que o Lula faz mas neste caso não só entendo como concordo totalmente".
"Eu acho que estratégias eleitorais precisam ser desenhadas de forma a garantir o máximo de apoio, o peso do Congresso na governabilidade é enorme aqui no Brasil, basta ver o que aconteceu com Dilma [caiu por ter menos de um terço dos deputados com ela] e até com Bolsonaro [obrigado a ficar refém do Centrão, o conjunto de partidos que apoia os governos, sejam eles quais forem, em troca de cargos e orçamento, depois de em campanha o ter demonizado]".
Para Anna, "o Lula foi um grande presidente justamente por entender isso, é um articulador brilhante, nenhum governo funciona sem essas alianças, não dá para renunciar o apoio dos 'traíras', nem dos evangélicos, nem do Centrão, nem dos caciques".
Segundo a petista, "o Brasil tem um desafio gigante pela frente, muito maior do que no primeiro mandato do Lula". "Todas as conquistas de 13 anos do PT foram perdidas em quatro anos, primeiro com Temer e agora com o caos político, económico, sanitário e laboral provocado pelo Bolsonaro, vem aí o rescaldo da miséria, da fome, do desemprego, tudo sem nenhuma proteção social, por isso vale a pena o esforço de se sentar com golpistas".
Para Maurício Moraes, ex-jornalista da BBC Brasil e candidato a deputado federal pelo PT em 2014 em São Paulo, as bases petistas têm memória. "Mas o Lula está a fazer o que tem de ser feito".
"Ninguém esqueceu 2016. Mas estes encontros são política. O nosso maior problema hoje é Bolsonaro, o desemprego, a inflação dos alimentos, a derrubada da Amazónia. A urgência é encaminhar as questões do presente e do futuro próximo".
Mais ou menos o que acha Mariana Patrício, professora universitária no Rio de Janeiro, eleitora do PT de 2002 a 2018 mas hoje no PSOL, formação fundada logo no início dos governos de Lula por ex-parlamentares do PT expulsos por votarem contra o governo. Segundo eles, o presidente estava a governar muito ao centro e pouco à esquerda.
"Acho que o principal agora é derrotar o Bolsonaro e o projeto ultraliberal que não é só dele e que visa empobrecer a população ainda mais", diz Mariana. "Lula tem a estratégia dele e do PT, que precisa ser pensada a longo prazo, porque já deu sinais de que não funciona em qualquer contexto e independente da figura do Lula, mas agora a nossa situação é de extrema emergência".
Como afirma a politóloga Mayra Goulart, no fundo, o comportamento pragmático do Lula, a quem atribuem a frase "se Jesus governasse o Brasil, aliava-se até com Judas", só serve para derrubar a tese de que ele e Bolsonaro estão, cada um, no seu extremo.
"Considerar Lula um "extremista de esquerda" é algo completamente irracional, o Bolsonaro é de extrema-direita e o Lula um moderado, um centrista, por isso ele tem uma certa razão quando diz que nem é necessária a tal terceira via porque a terceira via é ele".
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