Lula gigante
Lula sem s é uma coisa duplamente singular. É singular no número, mas também na coisa. Lula é a lula gigante no Aquário Vasco da Gama, quem entra do lado direito, num comprido caixão de madeira. Nas visitas de estudo ao aquário, já por si oceanos de melancolia, lá estava a lula a receber-nos, queda, esticada, amarelada, comprida, a maior do mundo (estaria no Guinness?), com ar de morta, com ar de tudo menos de lula. Na minha imaginação há uns cordões, daqueles de veludo carmim entrançado, grossos, bambos, um u aberto entre dois suportes de latão que abanam mas não caem às investidas dos selvagens, os entespassados dos pré-tensores, cordões que não me deixam juntar a cara ao vidro do caixão e olhar a lula olhos nos olhos até o vidro embaciar da minha respiração e saliva, mas se calhar nunca houve esse cordão e podemos olhar a lula olhos nos olhos, e é a lula que não quer, ou não deixa, ou a professora manda avançar, ou um mais velho empurra.
E depois há lulas com s, no plural, lulas comida, ou lulinhas, com batata, depois de limpas e cortadas às rodelas (uma vez uma miúda disse-me que se tinha atrasado porque tinha estado a acabar de amanhar umas lulas para o jantar e todos gozaram com ela e eu apeteceu-me abraçá-la, mas não pude porque havia os outros e o seu gozo a fazer um cordão de veludo entre mim e ela). Lulas são moluscos, e como moluscos têm taxa reduzida de IVA, é o que diz no nosso Código do IVA desde sempre.
Os holandeses acham muita piada ao nome lula, primeiro porque mesmo para eles deve ser mais fácil de dizer lula do que que dizer lula na língua deles que é pijlinktvissen, e depois também porque lula lembra lul e lul na língua deles é pila, mas pila em calão. Na Holanda lulas é mais no Verão, em Espanha ou em Portugal; mas o que eles comem muito é arenque, haring, muitas vezes cru, segurado pelo rabo, pescoço para trás, abre a boca e fecha os olhos, e lá vai disto, é bom, tipo sashimi para homens. Para o nosso Código do IVA arenque cru ainda vai que não vai, e arenque cozinhado também, verdade seja dita, e se gostares, mas arenque fumado isso é que não, já levas com a taxa máxima, aliás como a da ostra, que também é taxa máxima.
As pessoas é que não sabem, mas o arenque fumado é uma coisa muito famosa, e não estou a falar só do poema do Charles Cros (hareng saur). Conta Dumas, no seu Dicionário de Cozinha, que no século catorze em Reims, na procissão de quarta feira santa que saía da Catedral cada pessoa levava um arenque fumado (hareng saur) preso por uma guita atrás de si, e enquanto tentava pisar o da frente tentava que não lhe pisassem o seu (ninguém sabe ao certo a razão do costume, mas talvez avisar que estava quase a acabar o enjoo a peixe, e dali a pouco se poderia voltar às carnes e à vontade). Mas na fiscalidade portuguesa o arenque fumado entra também por outro lado, pelo Fradique Mendes que, conta-nos a sua Correspondência, estava um dia muito bem e aparece um problema para resolver, tinha encalhado na Alfândega, ainda havia disso, uma múmia e não havia na pauta aduaneira um artigo para taxar as múmias, e andava tudo para a frente e para trás sem saber o que fazer "coçando o queixo". Mas Fradique tem a solução, e aqui mais vale citar, que o Eça não se costumava atrapalhar com as palavras: "ele, Fradique, sugerira o artigo que taxa o arenque defumado. Realmente, no fundo, o que é um arenque defumado senão a múmia, sem ligaduras e sem inscrições, dum arenque que viveu. Ter sido peixe ou escriba nada importava para os efeitos fiscais".
Isto tem muita piada, mas para um fiscalista ainda tem mais, porque é uma maneira muito simples de mostrar a irracionalidade das interpretações absolutamente literais da lei (na Correspondência, claro, o assunto vai resolver-se com uma cunha - "um empenho" - ao Ministro da Fazenda para a múmia sair da alfândega sem impostos) - o texto é uma alegoria sobre a necessidade de, no Direito como na vida, a substância prevalecer sobre a forma. A lei inteligente tem a abertura que permite as interpretações inteligentes, atualizadas, mesmo que não esteja lá escrito com todas as letras. Os leitores das leis disntinguem-se no seu grau de sofisticação, tal como se distinguem os leitores de biblias, ou do corões, pelos valores que os guiam para lá da frieza das letras.
E porque a lei normalmente não é parva é que já admitia a taxa reduzida do IVA nos copos menstruais, e o país fez um pouco figura de parvo a falar da taxa reduzida que já o era. Tivemos a nossa menarquia parlamentar.
Sobre o conteúdo da medida, e dos copos, nada direi, não é da minha conta, não "tenho o mênstruo escondido num reduto / onde teoricamente chega o mar", na expressão rica em camadas interpretativas de Luiza Neto Jorge, o importante é que já temos leis fiscais que cheguem para as estarmos a duplicar onde não são necessárias. Mas claro, era preciso fazer o jeito ao PAN, e antes nisto que não custa nada a ninguem porque já era, do que agora ir proibir as touradas assim a correr.
O arenque vem do Mar do Norte, terra de petróleo. Por cá também temos petróleo, e um dos campos, concessionado nos anos oitemta havia a área de concessão n. 229 chamada "Lula" (as outras eram Barracuda, Cavala, Chaputa). No Brasil havia o campo petrolífero do Tupi, onde está a portuguesa Galp. Quando em 2010 se provou a viabilidade comercial do Campo do Tupi, a Petrobrás mudou-lhe o nome. Era preciso um nome diferente. Ora deixa cá ver, animais do mar, moluscos, começados por L.... Lula, ficou Campo Lula. Nada a ver com o Presidente do mesmo nome. Foi uma homenagem ao campo petrolífero português, de onde nunca saiu nada que não lulas. Ou à lula gigante do aquário. Ou à lula, simplesmente molusco.