Lula está entre "petismo", "tebetismo" e "janonismo"
O momento mais tenso do debate que deu o pontapé de saída das eleições de 2022 no Brasil, a 28 de agosto na TV Bandeirantes, não foi protagonizado por Lula da Silva ou Jair Bolsonaro nem ocorreu defronte das câmaras. Nos bastidores, André Janones, deputado apoiante de Lula, e Ricardo Salles, ex-ministro do ambiente de Bolsonaro, tiveram de ser separados enquanto gritavam "vagabundo", "ladrão" e "frouxo" um para o outro. Começou naquele dia o que hoje se chama na política brasileira de "janonismo cultural", a reação violenta do campo lulista às violências do campo bolsonarista.
André Janones, 38 anos, é deputado federal por Minas Gerais pelo Avante, um dos partidos que formam a coligação em torno da candidatura de Lula. Candidato presidencial às eleições deste ano, desistiu no dia 4 de agosto, apenas três semanas antes do debate na Band, para se juntar à campanha online de Lula. Janones, que no início do ano atraiu 3,3 milhões de brasileiros a uma live sua no Facebook, é um especialista no combate político digital - ou, "terrorismo político digital", como preferem alguns.
Daquele dia 4 de agosto para cá, Janones vem usando aquilo a que a cientista política Letícia Cesarino chamou de "virar o feitiço contra o feiticeiro". Além da briga com Salles, convenientemente filmada pelos seus canais online, acusou Bolsonaro de "satanismo" para defender Lula de acusações idênticas, fazendo uso de uma intervenção antiga do atual presidente numa loja maçónica. E, para responder à notícia falsa de que o candidato do PT iria fazer de José Dirceu, condenado no escândalo do Mensalão, ministro outra vez, editou uma entrevista do rival a oferecer um ministério a Collor de Mello, o presidente de 1989 a 1991 de má memória para o Brasil.
"Eu acho importante deixar registado o meu lamento por estarmos discutindo política no nível que estamos discutindo", disse Janones, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. "Num país com 33 milhões de pessoas passando fome, milhões de desempregados e extremamente desigual, ninguém queria estar a debater notícias de satanismo, guerra religiosa e quais delas têm maior alcance mas numa guerra você nem sempre escolhe quais armas usar".
"O bolsonarismo desceu o nível da política, deixámos o bolsonarismo nascer e não percebemos, agora temos de combatê-lo e essa é a única arma que temos", completou.
Há no campo progressista quem defenda e quem ataque o "janonismo". "O dia de hoje prova mais uma vez que, goste-se ou não, o futuro do Brasil e a contenção da crise climática no planeta (sim) depende, acredite, do "janonismo cultural" e de deixar a "fascistada" na defensiva, perdida e sem nadar de braçada nas redes. Não é bonito, mas funciona. Aceite", escreveu o jornalista nas áreas dos direitos humanos e desmatamento ambiental Maurício Angelo, depois das acusações a Bolsonaro de satanismo.
"Ao ver o Carluxo [Carlos Bolsonaro, segundo dos filhos do presidente que conduz as redes sociais do pai] desbaratado das ideias, reclamando de fake news, o [bispo aliado do presidente Silas] Malafaia tentando se explicar, toda a base fundamentalista confusa e sem dominar a narrativa e um estrago gigante no Gabinete do Ódio [grupo de apoiantes radicais online de Bolsonaro], sinto que com uns 15 Janones teria sido vitória à primeira volta".
E já há mais Janones, além de Janones. Patrícia Lélis, jornalista sediada nos EUA que namorou Eduardo Bolsonaro, terceiro dos filhos do presidente, tornou-se radical apoiante de Lula nos últimos anos. Ela espalhou fotos e vídeos falsos de teor homossexual de Nikolas Ferreira, o deputado bolsonarista mais votado do país, e do pastor evangélico conservador André Valadão, chegando à liderança dos assuntos mais comentados do dia no país.
Muito criticada, também à esquerda, ela reagiu em tom sarcástico. "Ain Patrícia você está pegando muito pesado com os bolsonaristas, somos de esquerda e não precisamos disso, vamos espalhar paz e amor... Chumbo trocado não dói! Quem está com pena que leve um bolsominion [forma pejorativa como são chamados os bolsonaristas] para casa e cuide. Eu vou é atear fogo!".
Janones também lamenta os ataques sofridos à esquerda. "Uma pequena parte do campo progressista, principalmente a ala mais elitista e preconceituosa, vem me criticando há tempos por eu estar, segundo eles, ajudando a rebaixar o nível do debate político, através do que chamam de "janonismo cultural" [...] mas, num confronto bélico, quem é contra as armas de fogo só tem uma de duas opções: usar a arma de fogo ou ser morto por ela! Eu escolho a primeira opção", escreveu no Twitter.
Se a guerra eleitoral no Brasil, desde que em 2018 Bolsonaro se elegeu com escasso tempo de antena televisivo e usando fake news online sobre o rival Fernando Haddad, se desenrola em boa parte no palco das redes sociais, as ruas ainda são um território importante.
Pelas cidades do país, o bolsonarismo deu demonstrações de força ao longo do mandato ao atrair multidões que a esquerda começa a tentar agora contrapor. Em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, regiões onde Bolsonaro venceu no dia 2, Lula atraiu milhares às ruas: muito graças à capacidade de mobilização do PT, um dos maiores e mais coesos partidos brasileiros, e de movimentos sindicais e populares, o candidato foi aclamado por uma onda vermelha. E isso é positivo para a sua campanha?
Não, segundo Simone Tebet, outra ex-candidata, como Janones, que decidiu apoiar Lula na segunda volta. Como Lula e o PT têm elevadas taxas de rejeição, a senadora do MDB sugeriu o uso de branco, em vez do vermelho associado ao partido. E na última quarta-feira, dia 12, a campanha já pediu aos apoiantes para trocarem de cor, de vermelho para branco, durante a visita do antigo presidente ao Complexo do Alemão e a outras comunidades no Rio de Janeiro.
Aliás, a própria Tebet deve participar em ações de rua ao lado de Lula e de Geraldo Alckmin, candidato a vice, na chamada "faixa azul" da região Sudeste, isto é, o interior do estado de São Paulo, onde tanto ela como Alckmin podem reduzir a tradicional desconfiança da população face a Lula.
A troca cromática é compatível com o tema da campanha: formar uma frente ampla, da esquerda até à direita democrática, em torno de Lula. Mais do que o petismo, a campanha líder das sondagens quer consolidar o "tebetismo".
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