Luísa Ribeiro Lopes: "Portugal tem tudo para ser uma digital nation"
Uma avó paterna mãe de sete rapazes e que "era feminista sem o saber" passou-lhe a vontade e a determinação de pôr as mulheres em pé de igualdade na sociedade portuguesa e em especial nas carreiras de topo das tecnologias, onde a vida levou Luísa Ribeiro Lopes, apesar da licenciatura em Direito. Hoje, a presidente da do Conselho Diretivo do .PT (entidade responsável pela gestão do domínio de topo nacional) e coordenadora-geral do INcoDe.2030, o maior programa de política pública dedicado ao reforço das competências digitais, está bem ciente do desafio que tem pela frente. E que passa muito não só pela captação de mulheres para as áreas de engenharias tecnológicas - "só há ainda 12%", cita de cor - como pela consciência de que há trabalho duro pela frente na construção de um país com literacia digital que lhe permita concorrer com o resto da Europa em pé de igualdade.
Encontramo-nos no Hygge Kafe, perto do Saldanha - onde tem o escritório e para onde está prestes a mudar-se, deixando para trás os anos de vida na Aroeira -, e é à mesa do moderno café que me conta da sua ambição e preocupações. À frente temos uns baldes de café, que nenhuma das duas dispensa, e Luísa vai desfiando o entusiasmo com que abraça cada desafio. Seja a madrugadora corrida diária, que nunca falha, ou a revolução digital que tem em mãos.
Sócia fundadora da APDSI, membro do Conselho Estratégico da ACEPI e do Comité Executivo da MUDA - Movimento pela utilização digital ativa, Luísa tem o perfil certo para a missão para a qual foi nomeada. E a certeza das dificuldades que enfrenta não lhe tiram pinga de ânimo para executar a tarefa. "Temos dois programas que estão a fazer toda a diferença nesta digitalização que tínhamos em curso e que foi brutalmente acelerada pela pandemia", vai descrevendo o potencial do Comércio Digital, criado para trazer as empresas para este universo e com particular foco nos gestores; e do Eu Sou Digital, promovido pelo INcoDe.2030 e pelo Portugal Digital e que se materializa na atração de jovens mentores para ensinar pessoas mais velhas à sua volta a usar a internet, em regime de grande proximidade. "Foi lançado no verão e queremos que, em três anos, seja capaz de captar e formar 1 milhão de adultos e potenciar o nosso capital humano no índice europeu; ainda temos na população portuguesa uma fatia de 18% de iliteracia digital, é o novo analfabetismo e temos de ser capazes de o ultrapassar, de atacar a exclusão digital com rapidez e consistência". Não é só para ficar bem na fotografia europeia, é também para vencer problemas como a solidão, o isolamento, a falta de acesso que nesta pandemia se tornaram mais dolorosamente notórios.
"A missão digital acelerou brutalmente em pandemia, no fundo isso veio ajudar a desenvolver os objetivos que tínhamos traçado, e que foram acelerados, mas também aprofundou muito as desigualdades entre quem tem e quem não tem competências, acesso a meios. E a nossa tarefa tornou-se mais emergente." Conta que só no primeiro mês de confinamento houve um crescimento de 64%. Quase dois terços das empresas não tinham domínio de internet e essa percentagem inverteu-se e solidificou-se. Tem os números bem presentes e garante que os que estão para sair, que ainda não pode partilhar, "são muito otimistas".
Mas esta viagem também gerou novos riscos, que é preciso enfrentar, incluindo o desafio da cibersegurança. "Há muito trabalho a fazer quer contra a desigualdade quer na área da cibersegurança, porque os ataques multiplicaram-se, entre as pessoas desprotegidas em casa e os que se estrearam no digital e simplesmente não conhecem os perigos. E esse combate faz-se indo porta a porta, levando a capacitação a todos, com trabalho de campo." Acredita que há sinais de que estamos no bom caminho. Quer internos - "o curso mais feito na nossa plataforma foi o Cidadão Ciberseguro, gratuito, certificado e que garantia essa aprendizagem" - quer globais. "A Europa inteira assume esta prioridade no digital e na sustentabilidade e isso é ótimo. Eu sou europeísta convicta e vejo a Europa a fazer o trabalho de casa todo. Às vezes somos lentos, mas somos mais consistentes e estamos a fazer um trabalho regulatório muito importante: liderámos em proteção de dados, estamos a trabalhar na regulação. E Portugal tem de se posicionar para estar na linha da frente do que está a acontecer e aproveitar a sua situação geográfica estratégica para beneficiar deste caminho nas áreas de Inteligência Artificial, dados, etc."
Quem ouve Luísa falar não desconfia da sua formação nas leis, parece uma nativa digital. Com os cafés americanos, bowl de iogurte com fruta e ovos mexidos à frente, conta o percurso que lhe imprimiu a tecnologia na pele e que começou com os pais a chamarem-lhe doida quando decidiu trocar uma carreira segura na banca por uma aventura nos Açores. Luísa saíra contente da Faculdade de Direito de Lisboa - "ainda gosto muito dessa área, que me deu excelentes bases" - e estava lançada na Caixa Central de Crédito Agrícola quando decidiu concorrer para uma vaga na Eletricidade dos Açores. Ter sido aceite mudou-lhe a vida. "Nessa altura, surgiu a oportunidade de fazer um escritório digital - o que era um enorme desafio numa altura em que comunicávamos pelo MIRC... mas foi um sucesso e começaram a pedir-nos que fôssemos a todo o lado mostrar projeto." Em 1998, quando Carlos César ganha os Açores, convidou-a para assessora e pô-la a liderar a Açores Região Digital, decorrente de um programa do então ministro Mariano Gago. Ainda antes de voltar a Lisboa, em 2000, com a filha de 1 ano, representou a região na Sociedade de Inovação.
Aos 55 anos, as covinhas do sorriso revelam o orgulho que não deixa passar no discurso quando lembra que chegou ao .PT quando havia apenas 10 mil domínios registados. Num só dia, em fevereiro deste ano, foram registados mil, a somar um total que já ultrapassa 1,3 milhões de domínios. E eventos como a Web Summit também contribuem para esse boost. "Ter um evento destes em Portugal faz toda a diferença. Temos acesso ao que se passa no mundo, estamos no centro de tudo por uns dias. E nós, sendo empreendedores como somos, tendo um clima fantástico, segurança e tantas qualidades, temos tudo para ser uma digital nation. Mas precisamos de atrair e fixar talento, de captar jovens e empreendedorismo tecnológico em todas as áreas. E o PRR pode ajudar. É o primeiro plano global europeu em que Portugal pode participar, e é uma possibilidade incrível."
Reconhece a dimensão da tarefa. Ao nível da educação, por exemplo: "Queremos que em 2023 todos os alunos e professores tenham acesso a internet móvel, um enorme desafio mas que é urgente cumprir, quer ao nível de equipamento quer de formação dos miúdos e de quem os ensina, de forma a termos uma escola mais digital. Ainda que eu seja defensora total do presencial, há coisas em que a digitalização tem um papel inegável, como sessões para tirar dúvidas online ou na facilitação de uma interação mais imediata."
Também a transformação das competências da população que já trabalha está a ser encarada como prioridade absoluta, e se Luísa reconhece que "um número residual não vai conseguir acompanhar a mudança", sabe que a esmagadora maioria pode e deve ser requalificada para ter acesso a "empregos mais desafiantes e interessante". E é ao Estado que cabe dar essas condições, abrir caminho, no que programas como o Upskill (requalificação avançada construída em conjunto com politécnicos, que garante emprego em determinadas empresas tecnológicas com salários mínimos de 1200) são essenciais.
Esta revolução digital, lembra, abre imensas possibilidades ainda quer na retenção de talento português quer na captação de estrangeiros para aqui se fixarem, mas é preciso levar muito a sério essa prioridade, uma vez que competimos hoje com o mundo inteiro pelo talento. "Essa emergência da qualificação traduz-se também em incentivos como o aumento de vagas em TIC e nos projetos de reconversão, passa por políticas de melhores salários nestas áreas... Há 800 mil vagas de emprego hoje nas áreas TIC na Europa. Se o mercado é global, os jovens vão para onde têm melhores oportunidades. Se querem ter talento e bom, as empresas vão ter de o pagar para atrair jovens que veem muito mais na vida do que o emprego como o entendíamos antes, que dão importância a todo um ecossistema."
Luísa sabe do que fala: a filha, hoje com 22 anos, move-se precisamente na área dos dados, onde vê um mundo de possibilidades. E se reconhece que o processo do leilão do 5G "não correu da melhor maneira e isso pode trazer-nos atraso neste percurso", o empenho das operadoras pode ajudar a mitigar parte dessa perda.
Já com o brunch quase terminado, partilha outra área que a move nas 19 horas que passa acordada por dia: a tal herança da avó que se traduz na vontade de deixar à filha um mundo mais igual. "Nunca tivemos tantos alunos de 18 anos no Ensino Superior como neste ano e 52% deles são mulheres", vinca. "Temos hoje políticas que promovem muito esta transformação para a Inclusão, e a secretária de Estado Rosa Monteiro promove-a muito. Tenho medo que se perca esse ímpeto por razões políticas, embora haja também mulheres de direita, como Leonor Beleza, que partilham muitos desses valores. O ponto é que não podemos dar certas coisas por adquiridas."
E se na sua missão tecnológica Luísa Ribeiro Lopes reconhece que gostaria de levar os projetos até ao fim, o doutoramento em que se meteu há três anos, em Estudos de Género, levou-a a fazer a ponte entre essa vocação e a missão para a igualdade, tratando o tema das "vivências das raparigas nas TIC na faculdade". "Aprendi com o exemplo da minha avó que as mulheres têm um papel determinante e gostava de contribuir para acabar com este desequilíbrio."
Não tem porém vontade de se eternizar nestas lutas. Adepta incondicional de viagens e com os destinos africanos e sul-americanos no topo das preferências, Luísa assume que essa foi a parte da vida de que mais falta sentiu em pandemia - "apesar de que consegui ir aos Açores com a minha filha e até subimos ao Pico", diz, olhando sempre o lado melhor. E garante que se vê muito bem daqui a dez anos: "A ler, de pés na areia, numa praia qualquer.