Luísa apanhava caranguejos na Torre de Belém
Quando Veronique e Jennifer se espreguiçam, provavelmente batem com as mãos no teto de fibra. Mas mal sobem os degraus que as levam ao deck do Todos-os-Santos, o teto delas passa a ser o céu de Lisboa, com o Mosteiro dos Jerónimos a dominar-lhes a vista de um lado, e o Padrão dos Descobrimentos do outro. Nesta semana moram na Doca de Belém, num iate de 12 metros.
É o hostel das duas hospedeiras da Air France, de férias em Lisboa. Melhor, a sua casa de Lisboa. Moram em Belém a balançar sobre o Tejo, e não querem outra coisa. Passam largas horas no deck, a conversar, a comer e a beber, a fazer coisa nenhuma, a espreitar os telemóveis. Ali têm tudo o que precisam. E quando não têm, vão a terra, ao supermercado, e dão umas voltinhas pelo bairro de (quase) todos os monumentos e museus de Lisboa - como há de dizer o vaidoso presidente da junta.
A maior parte do tempo das francesas é passado a bordo. Veronique já fizera do Tejo rua em junho, naquele mesmo iate-casa, e desafiou a amiga. Contagiou-a e eis outra viajante que também quer estar dentro de barcos, em contacto com a natureza - e já fala em tirar a carta de marinheiro até porque, para já, dali não podem sair. "É outra forma de conhecer o país", diz Veronique, que se estreou a dormir sobre as águas em Barcelona, depois Amesterdão, e é repetente de Lisboa.
Enquanto balançamos no iate, aos pés do Padrão dos Descobrimentos - belíssimo, após a limpeza a que foi sujeito em 2016 - há sossego apesar de ali, a poucos metros, borbulharem centenas de turistas multicolores. As duas francesas acham mesmo que estão num oásis, e até parecem alheadas do frenesim. "Sim, há muita confusão, mas ao final da tarde vão-se embora e fica tudo para nós", diz Jennifer, com uma estranha paz para quem vive no olho do furacão turístico da cidade.
Deixamo-las começar o almoço tardio a aproveitar os últimos dias na sua morada de Lisboa - querem voltar, claro - enquanto conversamos com Benedita Barros, no iate do lado, o Farras. Tal como o Todos-os-Santos, é gerido pela Yatstay, que é como quem diz o Airbnb aquático. Tudo começou porque Sérgio (Teixeira) queria ter um barco e não tinha dinheiro para isso. Criou um modelo de negócio em que os que dormem a baloiçar em sítios incríveis ajudam a pagar a manutenção dos barcos.
Benedita conta-nos que um dos casos que mais a impressionou neste ano e meio de vida da empresa foi um casal de americanos, na casa dos 70, que viajava de mochila às costas pelo mundo - e esses eram todos os seus pertences. Com a cabeça no ar voltamos a terra. Na enorme rosa-dos-ventos que atapeta a entrada do Padrão dos Descobrimentos, há gente que esvoaça a pé e de trotineta. Mais ao fim do dia será uma noiva a receber os ventos fortes dos bufões de pedra, enquanto o trânsito soluça na ponte, lá ao fundo.
É assim Belém. Tantas histórias atrás e à frente, e ainda o portão para a História de Portugal. Senhoras e senhores, daqui partimos para descobrir o mundo. A prová-lo lá estão os navegadores esculpidos por Leopoldo de Almeida, liderados pelo inconfundível infante. A poucos metros, a Torre de Belém, outro ícone universal. Hordas de turistas, de telemóveis espetados, gente que nos quer vender "artesanato" barato (parece que a cortiça é agora a moda) e outros que nos põem a pedalar no mesmo sítio, para fazermos o nosso próprio sumo de laranja com vista para o caos.
Era ali o parque infantil de Luísa Ducla Soares. A doce escritora, 80 anos acabados de arredondar, morava a dois passos, no Largo da Princesa, num prédio verde baixinho que a família foi inaugurar ao nível do primeiro direito. A linha do comboio já era uma fronteira, mas uma senhora de bandeirinha numa passagem de nível em frente à Torre dava ordem de passagem (ou de paragem).
"O meu principal entretenimento era apanhar caranguejos. A torre estava muito mal conservada e havia grandes buracos entre as pedras. Os caranguejos tinham ali casas extraordinárias", conta. Depois, a menina Luísa fazia corridas de caranguejos - "não era fácil, com um pauzinho tinha de os encaminhar para não saírem da pista". Na "praia da Torre" havia barquitos de pesca, acorria toda a sorte de pescadores e gente de fracos recursos. "Sofri muito. Os miúdos vinham ter comigo, e eu gostava de poder brincar com eles, a fazer castelos de conchas e seixos. Mas a minha mãe não me deixava. Dizia "não se cheguem perto que esta menina tem uma doença contagiosa"... Marcou-me muito."
Luísa Ducla Soares lembra-se de muitas coisas que já não conhecemos no bairro de Belém. Dos pescadores a quem a mãe comprava o peixe que se consumia lá em casa, chegado diretamente do Tejo - faneca, camarão, linguado -, dos golfinhos que saltavam no rio, dos bêbedos que se banhavam no chafariz do Largo da Princesa aos sábados de verão, trabalhadores que recebiam o salário e festejavam em álcool. Do elétrico, das carroças - "eram o transporte da época" -, do som dos silvos das fábricas da Rua Bartolomeu Dias e das "sereias" dos barcos em dias de nevoeiro. Ou dos campos atrás de sua casa, até à ermida lá no alto, onde apanhava as papoilas e os raminhos de oliveira para o ramo de espiga.
A memória desta senhora que escreve poesia à mão, livros infantis no computador e gere a sua agenda no calendário Google, é uma deliciosa linha sem fim: "Vou contar-lhe uma história: nos tempos da guerra, havia lá um pastor que tinha um bode chamado Hitler. Os rapazes toureavam-no muito, porque o bode era a encarnação do mal e todas as pessoas concentravam a sua raiva naquele bode."
Muito mudou em Belém. Recuemos mais uns séculos, com Paulo Almeida Fernandes, coordenador de inventário e investigação do Museu de Lisboa. Uma gravura de Henry L"Évêque, datada de 1816, mostra a praia de Belém em frente ao Mosteiro dos Jerónimos e, mais ao fundo, a Torre de Belém, ainda isolada no rio Tejo. "Esta visão de Belém no início do século XIX é bem distinta da que hoje se observa, transformada a antiga praia de Belém na Praça do Império, nas obras que deram origem à Exposição do Mundo Português (1940). Desde a primeira metade do século XVI, por ordem do rei D. João III, que o espaço fronteiro ao mosteiro estava vedado à construção de edifícios, e até a utilização do seu areal estava condicionado. Por essa razão, os núcleos urbanos de Belém cresceram a nascente do mosteiro (bairro ribeirinho que dava para a Rua do Cais - hoje Rua Vieira Portuense) e a poente (nas imediações da Torre de Belém e do Forte do Bom Sucesso, junto ao Palácio da Praia, que foi paço real e acabou por ser demolido em 1962)."
Hoje nos terrenos onde havia literalmente um bode expiatório há ruas e casas, algumas que valem milhões. A freguesia de Belém sobe a encosta suave com o "bairro económico do Restelo" - o edificado nas redondezas da pastelaria Careca, a super star dos palmiers e dos croissants - e com o bairro de Belém ou bairro das Terras do Forno, e é coroada pelas bestiais moradias que servem de casa a embaixadas e a empresas. Fernando Rosa é o presidente da junta de freguesia, um território de dez quilómetros quadrados, que se estende até Caselas, e tem uma frente ribeirinha que vai de Algés à Cordoaria Nacional.
O autarca não esconde a vaidade que é administrar um pedaço de cidade assim, pejado de museus e monumentos, ex-líbris da cidade e do país, dois deles Património Mundial da Humanidade. Mas os desafios são mais que muitos. Conta que lhe fazem propostas "incríveis" para eventos na freguesia. "Temos de ser os guardiões da zona. Claro que me interessa o dinheiro, que depois permite fazer outras coisas, mas temos de ter bom senso", diz. Sentamo-nos no seu gabinete. Está ali desde 2001. Num placard na parede aparecem flyers de campanhas antigas, ele com menos anos, ao lado de Santana Lopes ou Carmona Rodrigues. Na rua, toda a gente o conhece, mora no bairro desde sempre. Não há grande margem para falhar, ou tem os fregueses à perna.
Atualmente são 16 mil recenseados na freguesia de Belém, que assiste a uma forte "terciarização", sublinha. As grandes vivendas que o debruam, com vistas privilegiadas, ou são já embaixadas ou estão a ser vendidas pelos poucos privados que ainda ali se mantêm para empresas: "Quem é que tem dinheiro para ter uma casa daquele tamanho? Já viu a quantidade de empregados...?" Mas apesar do fausto que a zona monumental ou o bairro das vivendas pode sugerir, também se depara com problemas sociais. E há seis anos criou um cartão solidário, para famílias carenciadas. Atualmente são 340 as que beneficiam desde cartão, que tem um plafond que lhes permite fazer compras no supermercado, sem grande alarido. Os cabazes solidários enchiam casas minúsculas, às vezes passavam de prazo, e com o cartão as famílias compram bens essenciais de acordo com as necessidades, diz o autarca - que para arranjar financiamento para o cartão cortou nas iluminações de Natal.
Há mais desafios para a freguesia banhada de turismo. O lixo é um deles. Fernando Rosa reconhece-o e assegura que está a tentar melhorar. A verdade é que em dois dias encontrámos uma máquina de lavar roupa numa esquina, um televisor noutra, e um contentor de obras cheio de lixo mesmo em frente à Torre de Belém. "Devem ser restos do Rock in Rio." Mas também assistimos à passagem dos cavalos da GNR que participaram na cerimónia da apresentação das credenciais dos novos embaixadores no Palácio de Belém, cujo cortejo terminava com o carrinho de higiene urbana da junta a sugar os dejetos dos equídeos, rua fora.
Longe desta confusão está o artista plástico Xavier Almeida. Inaugurou uma exposição no Porto, razão pela qual o ateliê Bardo, no Largo Figueiredo, está meio despido. É um espaço de criação que partilha com Diana Policarpo, que acaba de ser distinguida com o prémio Novos Artistas da Fundação EDP. Herdaram-no de Marko Righo, fotógrafo e realizador, que se fixou em Londres. Xavier estudou Arquitetura mas o seu caminho acabaria por se desenhar nas artes plásticas (pintura e BD). Em novembro o discreto ateliê vai estar aberto ao público, na Lisbon Art Week.
Não muito longe, no Careca, Luís Mena, filho do proprietário, interrompe a toada calma dos embrulhos do croissant açucarado para levar. A Pastelaria Restelo tornou-se um fenómeno, ao fim de semana as senhas não têm descanso. Hoje está calmo.
O presidente da junta é um dos que por ali passam, e conta que a Rua Duarte Pacheco Pereira foi "o primeiro centro comercial a céu aberto do país", com duas fiadas de lojas nas arcadas, do talho à lavandaria - que ainda existe. Luísa Ducla Soares conta que aquele bairro se ergueu onde antes havia a carreira de tiro. Ali perto, estaciona o carro e mostra-nos a sua "terra" - foi nascer a casa de uma tia à Almirante Reis, porque a mãe teve medo de a ter naquele desterro, mas viveu no Largo da Princesa até pouco tempo depois de se casar.
"Não sou nenhum Fangio", dizia ao volante do Fiat velhinho, que nos leva a todo o lado. Estaciona à sombra, junto à ermida da sua infância (Ermida de São Jerónimo, na Praça de Itália). À volta da pequena igreja, sobranceira à Avenida da Torre de Belém, está o Jardim Ducla Soares, em homenagem ao seu pai, médico que gostava de ajudar toda a gente. "Quando era miúda vinha aqui apanhar pirilampos. Punha-os numa caixa, na esperança de iluminar alguma coisa."