Luis Sepúlveda: "Há revoluções que fracassam"
O mais recente romance de Luis Sepúlveda tem um começo diferente, porque as duas primeiras páginas são uma espécie de continuação de uma epígrafe. Trata-se da reprodução de uma carta de John Reed em que relata o perdão de Trótsky a Krasnov, um cossaco derrotado. O grande jornalista dos acontecimentos da Revolução Russa, autor de Os Dez Dias Que Mudaram o Mundo, relata como o "comissário do povo" evita a sua execução por um pelotão de fuzilamento à última hora, mas John Reed deixa uma interrogação: "A história julgará se Trótsky fez bem ao perdoar a vida do ataman". Essa é a questão a que o novo romance, O Fim da História, responde. Como? Sepúlveda esclarece: "Quando comecei a escrever este livro queria ter um momento muito preciso da História para que ficasse bastante clara aquela expressão que diz que quando uma borboleta mexe as asas na Ásia acabará por provocar uma tempestade na Califórnia meses mais tarde." Ou seja, explica melhor, "tudo na História está ligado. Por isso, com este texto de John Reed queria mostrar que quando Trótsky perdoou a vida ao chefe dos cossaco, não imaginava que esse seu ato teria efeitos setenta anos mais tarde no Chile, no momento em que o seu neto se tornasse num dos principais torturadores nesse país. Queria que isso ficasse claro logo no início do romance." Como não pretendia que fosse o narrador a fazer esta premonição da História, Luis Sepúlveda recorre ao "grande cronista da Revolução Russa".
Acrescenta que não foi apenas esse ensinamento que retirou de John Reed: "Naqueles tempos era difícil ser-se jornalista num país tão longínquo. Não havia Internet, nem uma linha de telefone acessível para enviar desde Leninegrado os seus textos de reportagem para Nova Iorque. Só o podia fazer por telégrafo. Era-lhe fundamental ser tremendamente rigoroso na utilização da linguagem e muito preciso para contar tudo aquilo que observava - sempre com o mínimo de palavras. Por isso mesmo, cada artigo que escrevia era uma obra prima. Fui seguindo esse seu exemplo narrativo, o de escrever como John Reed, o modo como fiz este livro. É também uma homenagem."
A sua editora, Tusquets, diz deste livro que "revalida Luis Sepúlveda como um grande narrador". Tinham saudades de livros que não fossem para crianças?
Não é bem isso que pretende dizer, antes que está muito contente com todos os meus livros porque, do ponto de vista comercial, resultam bem. O que se passa é que queriam que voltasse a um romance deste género. É a isso que se refere com o revalidar, ou seja, o registo policial utilizado em O Fim da História.
Qual é o género que mais gosta?
Todos eles. Cada género significa o modo de cumprir uma história que tenho na cabeça. Ela nasce e o seu desenvolvimento depende do modo como sinto que deverá ser contada. O registo deriva em muito do que me surge na mente e nunca sou capaz de começar a escrever dizendo para mim próprio que vai ter de ser assim. Dessa forma, nunca resultaria porque no decorrer da escrita a história vai impor-se como quer. Corresponde ou não ao registo de um romance histórico, de viagens, de aventura ou policial. Portanto, sinto-me bem em todos os géneros desde que a ideia tenha força para ser um livro.
Este romance tem muito a ver com a atual situação de grande confusão política na América latina. Foi intencional esse foco?
De alguma maneira sim. A história deste livro começa em 1917, com a Revolução Russa, e termina em 2010, no Chile. Tem muito a ver com o desenvolvimento da História social neste país, que tem sido bastante conflituoso porque quando acabou a ditadura gerou-se uma grande esperança no que se seguiria. Infelizmente, foi defraudada porque a nova democracia incorporou a continuação do modelo económico anterior. É certo que se recuperaram direitos civis e há uma relativa liberdade de imprensa, no entanto transformou a sociedade de uma forma apática, como é a descrita neste romance.
Começa com uma conversa entre um taxista e um passageiro, bastante exemplar do estado do país!
Sim, sempre que se chega a um aeroporto há um taxista que nos faz o diagnóstico social. Por norma, são sempre muito reacionários.
Por isso diz que gostaria de ter uma pistola para o silenciar...
Sim, é uma reação que não passa de uma brincadeira para significar que perante tanta estupidez era preciso que ficasse calado.
Mas não é muito autobiográfico?
Parte das características do protagonista Juan Belmonte são minhas. Temos muitas coisas em comum, confesso-o porque escrevi o romance em que ele entra pela primeira vez, Nome de Toureiro, numa situação muito difícil. Estava no Hospital de Hamburgo, muito doente e havia uma grande possibilidade de não sair vivo de lá. Então, decidi terminar esse romance que ainda estava a meio. Na hora de construir o protagonista, como em todos os meus livros, gosto de fazer a sua biografia. Quanto mede, o que come e bebe, se tem família, os seus hábitos e, neste caso, dei-lhe a minha própria biografia - pelo menos uma parte de mim. Portanto, existe uma grande afinidade.
Este regresso de Juan Belmonte vai ter continuação?
Essa é a pergunta que fazem todos os meus editores... Belmonte aparece há 20 anos e agora quando voltei à escrita dei-me conta que o único protagonista que me interessava era ele. Chamei-o. Como temos esse passado semelhante, e ele "aceitou" regressar desta vez, possivelmente vai continuar ativo por mais um livro. Posso adiantar que o romance que estou a escrever continua com ele. Portanto, os editores estão satisfeitos.
Dessa parte autobiográfica ressalta a frase "Não podemos fugir da sombra do que fomos". É assim?
É verdade, porque esses elementos autobiográficos marcam quem nasceu como eu no ano 1949. Era o início da segunda metade do século passado e foi uma época muito interessante. Terminou a II Guerra Mundial, com milhões de mortos, o holocausto, mas foi também o tempo de movimentos sociais muito poderosos, da Guerra Fria e do Vietname, dos movimentos de libertação e de descolonização africana, bem como da revolução latino-americana. Essas experiências todas marcaram-nos enquanto geração. No meu caso, que pertenço a uma geração que iniciou a militância muito cedo, não concebíamos outra maneira de estar na sociedade a não ser pela participação política intensa.
É muito diferente agora?
Invejo quando vejo um jovem de 25 anos, em quem a única vontade é terminar de estudar e iniciar uma carreira. Quando tinha essa idade já tinha estado preso e participado em situações políticas muito complicadas. O tempo mudou, mas considero que tudo aquilo que fizemos ainda projeta uma força muito forte no presente e, para o bem ou para o mal, os tempos mudaram mas não escapamos à sombra do que fomos.
Nem toda a América Latina acabou bem. É o caso da Venezuela?
O que acontece é que há revoluções que fracassam. A grande razão da mobilização social é algo muito simples e chama-se felicidade. Que se mede de forma muito simples: que exista liberdade, que não se passe fome e que a Educação e a Saúde sejam públicas. São coisas simples. Se um país administrar bem os seus recursos é mais fácil atingir esses objetivos, no caso da Venezuela a grande riqueza proporcionada pelo petróleo evitou que houvesse um grande esforço pedagógico na sociedade. Viver numa casa pobre mas ter um plasma de dois metros não é nenhuma alteração cultural, até porque o que viam nesse ecrã era uma merda. Espero que a situação termine bem. Há experiências que têm resultado bem, mas essas são as mais silenciosas, como é o caso de Portugal. Uma exceção nesta Europa.
Fez um esforço pedagógico no seu romance?
Sim, está tudo muito bem explicado. Resulta de uma grande investigação e acabei a reduzir mil folhas de documentação a muito poucas folhas de literatura. É a parte difícil do trabalho, mas dá muito prazer fazê-lo. O que diz respeito à História, à Revolução Russa e à passagem dos cossacos pela Croácia, Itália e a sua chegada ao Chile é rigorosamente verdade.
Diz-se que o seu registo faz lembrar o de Raymond Chandler...
Essa comparação é uma honra para mim! Neste romance, recuperei o ritmo do primeiro livro com Juan Belmonte. Quanto a Chandler, sou um grande admirador e considero-o um mestre no género, tal como Chester Himes, mas a grande referência neste estilo para mim é Eric Ambler.
O título, O Fim da História, faz lembrar a tese de Fukuyama!
Nada tem a ver, nem acredito sequer que a História tenha terminado. Continua. Ao ler-se o meu romance percebe-se que muitas das personagens estão numa busca desesperada por um fim para as suas histórias pessoais. É como as mães da Argentina que continuam a procurar os seus filhos para os sepultar e darem um fim à sua história. Todos temos direito a que uma parte da nossa história termine.
Uma personagem que não tem grande papel é Verónica, que apenas serve de exemplo para a violência e a tortura política. Porquê?
Ela tem o seu papel e é quem dá força ao protagonista. É alguém que passou pelo pior de uma ditadura militar, não denunciou e manteve sempre o silêncio que caracterizava as vítimas que passavam pelos campos de tortura para proteger os seus companheiros.