Luís Magalhães: "Temos 23% do crédito com moratórias e isso é muito preocupante"

Com mais liquidez do que nunca na economia, o administrador da KPMG vê "a luz ao fundo do túnel" para a recuperação de Portugal. Mas há sinais preocupantes, como sermos dos países europeus com maior fatia do crédito sob regime de moratória.
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A KPMG foi fundada em 1987 mas a história da companhia remonta ao século XIX. Hoje é uma marca global, com presença em quase 150 países e que emprega 220 mil pessoas, é uma das chamadas big four, as quatro grandes consultoras mundiais. Em Portugal está presente desde os anos 80 e emprega mais de um milhar de pessoas. Uma delas é Luís Magalhães, que entrou na KPMG há quase duas décadas, depois de ter passado 12 anos no BPI, sendo hoje administrador executivo e responsável pela área fiscal.

A KPMG contacta diariamente com a realidade económica, com centenas ou milhares de empresas em todo o país. Qual é o ambiente que se vive nas empresas? Otimismo? Pessimismo?

O que sinto é que há globalmente preocupação, ansiedade, incerteza, mas dentro dessa visão mais macro há realidades muito díspares, o que é muito interessante: vemos setores - e empresas dentro deles - que cresceram durante a pandemia. Depois, infelizmente, a maioria tem dúvidas ou sérios problemas. Portanto, o balanço global é o que se vê nas notícias, em conversas, o sentimento global manifestamente não é positivo. É de forte preocupação. Felizmente, as notícias da última semana na saúde são positivas e isso também cria efeitos económicos de algum otimismo, de vontade de olhar o futuro com um sorriso. Mas não chega, porque ou a evolução económica global e nacional acelera ou... A OCDE recomendou nesta semana ao governo português alguma prudência nas medidas porque acha que os próximos dois anos do ponto de vista do crescimento serão muito menores do que gostaríamos. Portanto, se tivermos em 2020 uma quebra do PIB próxima de dois dígitos e uma recuperação de 1,2% que é a estimativa da OCDE em 2021, equivale a dizer que não saímos...

O governo prevê mais...

Sim, o Banco de Portugal (BdP) também, mas se esta evolução não for mais rápida e assertiva, esse sorriso provocado pela vacina vai desvanecer-se. A vacina significa algo muito importante mas não evita o desemprego, alguma depressão do ponto de vista dos investidores, por exemplo. Portanto sentimos duas coisas opostas no global mas o sentimento não é otimista.

Se a vacinação correr bem, só a partir de meados do próximo ano teremos uma quantidade suficiente de pessoas vacinadas para permitir o regresso a alguma normalidade nas vidas das pessoas e também na economia. Até lá, o tecido económico consegue resistir?

Julgo que a covid veio potenciar ou induzir problemas que algumas empresas já tinham e por consequência o facto de a covid deixar de ser o problema não o resolve. As empresas que já tinham problemas, não é por a vacina resolver o problema de saúde pública que ficarão bem. Vão voltar ao que estavam - se conseguirem aguentar até lá.

E essas não devem ser apoiadas?

Acho que todas merecem ser apoiadas.

Mesmo as que já antes tinham problemas?

Depende dos problemas. A quebra do PIB que referi de quase dois dígitos é muito preocupante. E há outro aspeto que não tenho visto muito tratado que é o facto de termos cerca de 23% do crédito bancário total concedido a famílias e empresas - portanto excluo crédito ao Estado, autarquias... - em moratórias. Estou a falar de crédito à habitação, ao consumo, financiamento às empresas, à economia real. É a taxa mais elevada da União Europeia, talvez excluindo a Hungria. Cerca de um em cada quatro euros está ao abrigo do regime de moratórias. Podemos dizer, ainda bem que as temos ou teríamos um seríssimo problema, mas as moratórias não são perdões e terão um fim.

Podem provocar uma crise financeira?

Claramente. E um semestre chega para isto? Há casos em que sim e outros em que não, mas no global estimo - também o BCE já o disse - que poderá haver hipótese de as moratórias serem prorrogadas. Mas há empresas em que a moratória só vai atrasar uma morte inevitável, mas não sabemos quais. Nesta altura, é difícil tomar esse tipo de decisões e devemos dar um voto de confiança aos empresários que já em 2011 tiveram o papel que tiveram e continuam com vontade. Neste momento estamos com mais liquidez do que nunca, o dinheiro nunca esteve tão barato - as taxas em Portugal estão a zero - e era bom se pudéssemos empurrar o problema sem vergonha de dizer que durante mais algum tempo algumas empresas que de outro modo desapareceriam.

Seria útil pagar o que as moratórias atrasaram só no final do prazo do crédito? Reduziria pressão?

Há vários tipos de moratórias: as de setores mais afetados, em que há diferimento de capital e juros e noutros considerados menos afetados apenas há um diferimento do capital. Os modelos podem ser reinventados, mas o tema também nunca foi tratado de um ponto de vista que acharia interessante - e nós trabalhamos com muitas empresas nisso. O que a moratória representa é um balão de oxigénio do ponto de vista da liquidez. No fundo, os pagamentos que tenho de fazer farei mais tarde e o que recebo a menos dos clientes é compensado assim. Quando isto se faz a nível de empresas com alguma dimensão, significa rever todos os planos financeiros e de tesouraria, portanto empurrar de três em três ou seis em seis meses as moratórias, não ajuda, do ponto de vista da gestão. Uma moratória de dois ou três anos, do pinto de vista da gestão financeira, daria ao CFO ferramentas e alternativas que não tem quando se difere em prazos tão curtos mesmo que todas as moratórias somadas se chegue lá. Só vamos procurar soluções para três meses. Por isso acho que a nível mundial as moratórias deviam ser pensadas à luz de uma visão mais ambiciosa. BCE, BdP e todos dizemos que esta crise não acabará com as vacinas, portanto durante dois ou três anos teremos muitas dificuldades, e eu veria com bons olhos uma visão de mais longo prazo, mais ambiciosa, que desse às empresas - e aos bancos - maior estabilidade para resolver problemas.

Há risco de os bancos virem a ter problemas graves no fim das moratórias?

Não pode acontecer. O BCE também já o disse. Quando uma economia tem problemas é grave, quando a economia e o sistema financeiro têm problemas é mesmo grave. O BCE tem vindo a chamar atenção para isso e é importante que reguladores e supervisores antecipem os efeitos dessas medidas. E o tema das moratórias/default é esse: as insolvências terão impacto direto nos balanços. Os bancos estão hoje muito mais sólidos na cobertura dos seus riscos, daí as razões para preocupações serem menores, mas é preocupante tão grande percentagem de crédito em moratória. Sobretudo quando combinada com a queda do PIB. Porque a moratória resolve-se pagando e eu pago recebendo mais, se eu receber quer dizer que o PIB cresceu. Mas se em Portugal o PIB está a cair 10% e temos 23% do crédito em moratórias, é preocupante.

O fim das moratórias pode trazer um aprofundar da crise?

Se o produto não evoluir de forma mais positiva do que estimado e se não houver alternativas diferentes como a que há pouco referi, sim.

Há anos que ouvimos falar do peso excessivo da carga fiscal em Portugal, tanto para as famílias como para as empresas. A competitividade do país vai ter de passar por uma redução dos impostos?

A competitividade dos países, em 2020, tem de ser vista de forma que era vista em 1980/1990. O conceito de globalização é uma realidade e a competitividade entre países do ponto de vista global é para mim totalmente inaceitável. E já nem falo na Europa, porque há uns anos criticava-se a falta de coragem, capacidade ou vontade de Bruxelas criar um regime fiscal uniforme - apontava-se casos como a Irlanda, algumas situações no Reino Unido, Malta. Hoje o tema não se esgota aí, porque quando se opera no mercado económico opera-se com Singapura, Angola, EUA, Canadá, etc. O tema fiscal é muito relevante na competitividade das empresas e por isso tudo que se faça, e no plano comunitário já se faz, para que haja menos discrepâncias de forma que as empresas deixem de concorrer no plano fiscal é muito positivo. As empresas devem concorrer pela qualidade do produto, pelo preço. É inaceitável que se concorra pelo fator fiscal, porque os impostos são o preço de se viver em comunidade.

Mas não acha que Portugal exagera nos impostos?

Claro que exagera. Nós comparamos mal em quase tudo: nas taxas nominais, efetivas, nas cargas de impostos sobre o PIB... Os impostos que se pagam em Portugal, quer nas famílias quer nas empresas, são asfixiantes. Isso não desculpa nada, mas depois quando há mecanismos de pessoas com mais propensão para práticas menos legítimas há quem diga que em parte é por isso - eu não o aceito como explicação, mas admite que tenha algum fundamento, é desesperante. Rapidamente em Portugal se atinge taxas efetivas de 30%, pagar um terço ao Estado de salários de classe média típica... as taxas máximas de imposto em Portugal em sede de IRS são atingidas a partir de um rendimento anual agregado - um casal - de 80 mil euros. Poucos no país ganham isso, mas a partir daí paga-se ao Estado metade do que se ganha. E já nem falo no IVA, no imposto sobre combustíveis, na compra de uma casa, a carga fiscal é de facto asfixiante.

A União Europeia respondeu à crise com pacotes de valores nunca vistos, tanto da comissão como do Banco Central Europeu. É uma resposta suficiente? E é suficientemente rápida?

Foi muito rápida e até surpreendeu como as várias entidades se sentaram à mesa e se entenderam. Se chega, não sabemos, porque receio que não estejamos num horizonte de um ano, que demore mais, e temos visto notícias de que a UE admite rever em alta os valores da bazuca europeia. Portanto, o próprio BCE poderá ter de abrir ainda mais os cordões à bolsa para ajudar. E isso conjugado com as moratórias de médio/longo prazo permite-me ver a luz ao fundo do túnel, ver soluções. Mas temos de pensar de forma diferente e fazer coisas fora da caixa, sem os preconceitos habituais.

Portugal vai receber de Bruxelas 6 mil milhões de euros por ano nos próximos dez anos. Estes fundos vão ser distribuídos através dos critérios do plano de recuperação e resiliência. Como avalia este plano?

O que é que Portugal quer ser, a Europa e hoje o mundo é uma pergunta recorrente.. Do ponto de vista digital, de sustentabilidade, educação... são assuntos muito difíceis e sérios de que falamos com uma agenda a nove meses e um risco que existe é o de tomar más decisões por precipitação. É preciso rapidez mas também alguma ponderação, porque este dinheiro terá de ser pago por todos nós - ou pelos nossos filhos. O plano desenhado diz-nos duas coisas: nunca houve tanto dinheiro para investir como agora - o mercado financeiro tem liquidez como nunca, este plano de Bruxelas traz valores brutais, o dinheiro disponível nos próximos anos equivale a 50% de todo o que Portugal recebeu na antiga CEE desde 1986, quando entrámos. É um valor astronómico. E também nunca houve tantas ideias - uma das críticas ao plano Costa Silva era que não faltam ideias, seja na infraestrutura ou na economia digital, ferrovia, Sines, hidrogénio, educação, reconversão ambiental, 5G, telecoms... Há tanta coisa para fazer em Portugal que não falta onde gastar bem o dinheiro. Mas há desafios. Um é fundamental: que a administração pública tenha capacidade de resposta a esse projeto. Nós temos uma área de negócio que apoia as empresas nisto, nestas candidaturas, e vemos as dificuldades que existem do ponto de vista mais processual ou administrativo para que o dinheiro chegue às empresas. Por isso é muito importante que este dinheiro passe de um número de Excel para a conta das empresas e a economia real. É muito urgente e o prazo já conta.

E há forma de se apressar?

Tanto quanto sei, governo e entidades responsabilizadas por esta matéria estão muito atentas e empenhadas nisto. Passada a fase de discussão do tamanho do envelope, o foco e energia estão agora nisso - há consciência de que pode fazer toda a diferença um atraso de um ou dois meses para o dinheiro chegar às empresas. E largas dezenas de milhões já estão a chegar, o que é muito importante. Ideias não faltam, projetos para reconverter o país também não, nem dinheiro. O que é preciso garantir é eficácia da AP e o segundo fator: a gestão das empresas, a nossa competitividade que também não compara bem com outros países. É fundamental que haja requalificação das empresas para se gastar bem esse dinheiro.

E faria sentido usar esta oportunidade para Portugal corrigir fragilidades económicas estruturais?

Tudo que se faça para que a recuperação do país seja rápida, por via de fazer coisas novas bem feitas ou deixar de fazer coisas mal feitas é positivo. Mas este dinheiro não vem para ser usado como nos apetecer, tem regras bem definidas, parâmetros estabelecidos por Bruxelas. E temos de os usar dentro das balizas definidas, na economia real.

A crise trouxe também alterações no mundo do trabalho. Do contacto que tem com o tecido empresarial, que conclusão retira por exemplo sobre o teletrabalho? Veio para ficar?

Já cá estava, essa é a realidade. Nós temos colegas na empresa que já passavam o dia com os clientes e vinha ao escritório uma vez por semana, viajavam por todo o mundo.

Mas isso não é o comum na maioria...

Olhe que não. Uma coisa é a indústria - e mesmo aí não tem ninguém nos armazéns que há dez anos estavam cheios de pessoas, tem que ver com digital essa menor necessidade de pessoas em certas áreas. Mas sim, esta realidade veio para ficar. Primeiro porque a capacidade que os vários setores tiveram - agora falando de Portugal, que não é diferente do resto da Europa e do mundo - de continuar a trabalhar a partir de casa foi surpreendente. Os bancos estiveram quase parados dois meses e meio, o país em casa fechado, e os pagamentos foram feitos, ordenados pagos, fez-se crédito, as aplicações financeiras foram de número superior ao habitual, o e-commerce disparou... Provou-se que o mundo pode funcionar a partir de casa. Bem sabemos que não é bom, mas funciona. Portanto sim, acho que veio para ficar, mas não sei em que moldes. Ainda há uma semana Bill Gates dizia que 50% do valor que resulta de trabalhar em grupo se pode perder no teletrabalho - ainda não estamos prontos.

Outra consequência desta crise foi uma aceleração do papel da tecnologia no mundo laboral. As reuniões à distância são hoje a norma. Também é uma mudança estrutural ou vamos regressar aos hábitos anteriores?

Sim. Porque o tenho lido e ouvido. A IATA, Associação Internacional de Transporte Aéreo, publicou um relatório em que diz algo preocupante: os voos comercias de segunda a sexta são sobretudo de trabalho, corporate, enquanto os de fim de semana são de lazer. A IATA antecipa que já numa situação estabilizada pós-covid e com vacina, a quebra nos voos corporate será de 50%. Se for verdade - e não há porque duvidar - eu não sei como as companhias aéreas vão resistir aos serviços da dívida dos aviões, as empresas de handling vão aguentar, as que exploram aeroportos pagarão os salários que pagam... Nós tivemos 11 mil sócios numa reunião de todo o mundo aqui há um mês: foi inédito e era impossível se fosse físico. E receio que o que fazíamos mensal ou trimestralmente vai desaparecer. Outro setor preocupante é o retalho - nas rendas, no default, nos espaços das lojas dos shoppings. E nós temos neste setor dos centros comerciais cerca de 100 mil funcionários, é um setor com um peso de mão-de-obra muito importante e em todo o país. Tanto quanto sei, cerca de 30% estão em default nas rendas. À distância de um telefone conseguimos hoje receber em casa uma refeição, um lápis, um livro, uns ténis... o e-commerce - um dos setores que dispararam na covid - veio trazer um enorme problema ao retalho e distribuição. E atrás deste vem o imobiliário, porque os negócios são feitos com dívida. Ou seja é um problema em cadeia

Terá de haver consolidação ou alteração estrutural de algumas formas de negócio?

Admito que sim, acho que reconversões certamente, em tudo o que é retalho - nós evoluímos do comércio de bairro ara os shoppings com efeitos como fortíssimos investimentos imobiliários, qualificação de funcionários, etc. Esta é talvez uma terceira fase. Não digo que desaparecerão os shoppings, mas as pessoas estão, no país inteiro, disponíveis para a partir de sua casa e saboreando o empo em família em teletrabalho e a trabalhar tanto ou mais do que no escritório, evitando trânsito, poupando combustível, vai alterar hábitos de consumo. E uma vez mais negócios vão surgir com sucesso e outros desaparecerão.

A KPMG foi absolvida nesta semana pelo Tribunal da Concorrência das multas aplicadas pelo BdP que há um ano condenou a consultora por considerar que violara as regras de fiscalização ao BES. Como receberam essa notícia?

Vim com muito gosto aqui falar do futuro, que é o que nos preocupa, queremos ajudar as nossas empresas. Não me leve a mal mas não vou falar sobre esse assunto.

Nem sobre a condenação da CMVM?

Sobre nenhum assunto.

E em que medida foi a reputação da KPMG afetada por este processo?

Também não vou falar.

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