LUAR garante segurança do 'Companheiro Vasco'
Ninguém sabe como é que eles apareceram, nem quem os "contratou", mas no auge do Verão Quente a segurança do primeiro-ministro Vasco Gonçalves era assegurada por elementos da LUAR (Liga de Unidade e Acção Revolucionária). Uma organização fundada em Paris, em 1967, liderada por Hermínio da Palma Inácio e responsável por alguns das acções mais espectaculares que foram desferidas contra o regime derrubado pela Revolução de Abril.
Trinta anos depois, quem trabalhou de perto com aquele primeiro-ministro recorda a presença desses candidatos a guerrilheiros no interior da residência oficial de S. Bento. Uma opção ditada pelos acontecimentos em torno do 28 de Setembro de 1974, quando Vasco Gonçalves era objecto de todas as contestações spinolistas.
Até então, Vasco Gonçalves deslocava-se de casa para o gabinete e daí para onde quer que fosse sem nenhuma segurança pessoal, o que hoje seria razoavelmente impensável. "Até ao 28 de Setembro, vi-o muitas vezes ao volante do automóvel, quando ia para casa", recorda actualmente um dos colaboradores mais próximos do antigo primeiro-ministro e que, na altura, se encontrava a prestar serviço militar, tendo sido destacado para a assessoria do chefe do Governo um pouco por acaso.
Depois da resignação do general Spínola do cargo de presidente da República, tudo mudou. Quem trabalhava para o primeiro-ministro, e sobretudo quem o acompanhava politicamente, sentiu o peso das conspirações spinolistas e preparou-se para os combates que já se anunciavam, à medida que a revolução se radicalizava.
Sem confiar no dispositivo montado pela GNR em torno do complexo de S. Bento, onde se inserem o Parlamento e a residência oficial do primeiro-ministro, os elementos que rodeavam Vasco Gonçalves avançaram para a constituição de um corpo de segurança pessoal, criado à imagem e semelhança daquele que o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) formara no Chile para proteger Salvador Allende. Optaram pelos operacionais da LUAR. "Era impensável recorrer à PSP. E as forças militares que estavam mais próximas de Vasco Gonçalves, como os fuzileiros, não tinham vocação para esse trabalho."
Envolvidos num certo romantismo revolucionário (por força de operações que deram cabo do moral ao regime anterior, como o sequestro do paquete Santa Maria, o desvio do Super Constellation da TAP que fazia a ligação entre Lisboa e Casablanca ou o assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz), os operacionais da LUAR juntaram-se, depois do 28 de Setembro, a quem já se encontrava, nesse momento, a colaborar com o primeiro-ministro Sousa Lobo, um major de engenharia, que chefiou o gabinete; Henrique Lopes Mendonça, o oficial da Armada que se encarregou dos assuntos militares e da segurança; Luís de Macedo, que pôs Vasco Gonçalves em contacto com o movimento dos capitães; e Rosário Dias, o célebre primeiro-tenente da Armada, licenciado em Economia, que era responsável pelos dossiers económicos e financeiros e que se destacou pela especial vigilância que dedicou aos capitalistas e agrários que vieram a ser vítimas das nacionalizações e das expropriações de 1975.
Assessores. Um conjunto de oficiais que se juntaram a muitos civis que ali estavam igualmente colocados. Como David Lopes Ramos, Luís Salgado de Matos, Leal Loureiro ou Margarida Lucas, entre outros. "Para além dos militares e dos oficiais do quadro permanente, a maioria das pessoas que colaboravam ou que trabalhavam para o gabinete de Vasco Gonçalves estavam ligadas ao PCP ou ao MES."
Nessa altura, recorde-se, o MES já se transformara num movimento radical (Jorge Sampaio, João Cravinho, Nuno Brederode Santos e Galvão Teles já tinham abandonado a organização) e a formação caminhava, a passos largos, para a FUR (Frente de Unidade Revolucionária), para onde iriam convergir, no auge do Verão Quente de 1975, estruturas como o PRP/BR, UDP, FSP, LCI, MDP/CDE e LUAR, além de um PCP relativamente à deriva que entrou para aquela plataforma para sair dias depois.
Um ritmo vertiginoso que talvez ajude a explicar as razões por que a segurança pessoal do primeiro-ministro foi, nessa altura, atribuída à LUAR, relativizando todas as desconfianças que pudessem derivar do facto de a organização ser liderada por Palma Inácio e integrar personalidades como Fernando Oneto, duas figuras próximas de Mário Soares e que acabariam por aderir ao PS, quando o partido já se encontrava nos antípodas do que Vasco Gonçalves e os gonçalvistas representavam.
ex-exilados. Sem que nada disso tivesse despertado desconfianças a quem já colaborava com Vasco Gonçalves. "Era um grupo de pessoas de grande lealdade e dedicação, embora um pouco heterogéneo, que misturava intelectuais e pessoas mais simples. A maioria tinha vindo da Bélgica e da França e creio que para lá voltou, quando Vasco Gonçalves saiu do Governo."
Consequências de quem estava habituado ao exílio, integrando uma organização clandestina que fora baptizada à pressa por Emídio Guerreiro - que liderou o PPD depois da revolução e que faleceu recentemente - sem consultar ninguém, porque era necessário reivindicar publicamente mais uma operação perpetrada pela LUAR.
Estruturada para os tempos da ditadura, a LUAR (à qual pertenceu também Camilo Mortágua, um dos "heróis" da operação Santa Maria e um dos responsáveis pela célebre ocupação da Herdade da Torre Bela, em pleno Ribatejo) tinha uma componente militar e uma componente política, devidamente separadas e relativamente herméticas, que nem sempre coincidiram para o mesmo lado durante o processo revolucionário (PREC).
O que ajudou, por certo, a separar aqueles que protegeram Vasco Gonçalves durante o PREC dos que se juntaram a Mário Soares e ao PS - e por essa via aos sectores moderados do MFA (Grupo dos Nove) - que combateram o gonçalvismo durante o Verão Quente.
segredos. Sem que isso explique, no entanto, a presença de Palma Inácio na residência oficial de São Bento, onde se reunia com os seus operacionais. "Vi-o por lá muitas vezes", garante o antigo colaborador de Vasco Gonçalves. "Agora, se ele aparecia à revelia do primeiro- -ministro ou se fazia reuniões no edifício sem que o primeiro-ministro soubesse ou estivesse informado, isso já não sei. Mas que Palma Inácio lá ia, ia. Vi-o muitas vezes."
Mais difícil de obter, 30 anos depois do Verão Quente, é a caracterização do perfil que definia os operacionais que a LUAR destacou para segurança pessoal de Vasco Gonçalves, preocupação que se intensificou depois do 11 de Março de 1975, momento em que se suspeitou que o primeiro-ministro pudesse vir a ser alvo de um atentado.
Apesar disso, quem esteve na LUAR ou no gabinete de Vasco Gonçalves não tem dúvidas em afirmar hoje que a maioria das quase duas dezenas de operacionais que ali trabalharam eram pessoas relativamente modestas e, mais do que isso, também não tinham, pelo menos aparentemente, especial preparação para a tarefa de que estavam incumbidos.
"Às vezes, metia-me com eles. Especialmente quando andavam com um monte de granadas espalhadas pelo carro ou quando deixavam as armas à vista de todos. Nessas alturas, costumava perguntar--lhes e se houver um acidente, o que é que acontece?"
Uma opinião que traduz um certo desleixo ou até um certo amadorismo que era característico do ambiente e do ritmo frenético que se viviam nesse período em Portugal, mas que não é integralmente partilhado por outros antigos colaboradores de Vasco Gonçalves (ver outro texto).
O que não impede, no entanto, que uma das fontes consultadas pelo DN não resista ao desafio de tentar traçar o perfil dos operacionais da LUAR que passaram a andar permanentemente colados a Vasco Gonçalves. "Quem os liderava era um tipo de barba, mas já não me recordo como é que ele se chamava. Lembro-me que tinha vindo de França e que passava o tempo todo a ler. E como os seguranças passavam muito tempo na residência oficial de São Bento, esperando que Vasco Gonçalves saísse, ele lia muitíssimo."
Quem sabe se por essa razão ou por outra, o facto é que ele tinha um petit nom. "Os tipos da LUAR chamavam-lhe filósofo. Outras vezes, comandante. Nunca mais o vi. Creio que é um dos que voltaram para França."
Revezando-se entre si, este grupo, de que ninguém consegue dizer o número exacto, coincidindo apenas no facto de que seriam mais de 10 e menos de 20, acabou por desaparecer com a queda dos gonçalvistas e a saída de cena de Vasco Gonçalves, um militar controverso que geriu o seu gabinete de primeiro-ministro como se ele fosse uma espécie de estado-maior. Ou seja, operacional q.b. "Reunia connosco todas as manhãs, ouvia o que tínhamos para dizer, distribuía trabalho e decidia o que tinha a decidir."
O que talvez explique também as certezas de uma outra fonte consultada pelo DN. "Não sei quem é que trouxe os seguranças da LUAR, ou se isso foi inspirado no exemplo do MIR e da experiência chilena, que, nessa altura, estava ainda muito presente nas nossas memórias. Até por causa do que tinha acontecido ao Allende. Mas de uma coisa tenho a certeza a ideia de que a segurança pessoal do primeiro-ministro fosse feita por civis, e ainda por cima da LUAR, não saiu da cabeça de Vasco Gonçalves. Disso eu tenho a certeza."