Luanda, Los Angeles, Lisboa. "Sem viagem não há obra", diz António Ole
"É a maior exposição de António Ole que já foi feita", afirma a diretora do Museu Gulbenkian Penelope Curtis, apresentando a exposição Luanda-Los Angeles-Lisboa, três cidades que falam da "errância" do artista plástico, 65 anos de vida, quase 50 de carreira, feitos de viagens entre continentes e suportes, que se inaugura no sábado no Centro de Arte Moderna, em Lisboa. Pintura, fotografia, colagem, filme. "Por onde começamos?", pergunta. "Talvez, pelo princípio", responde ele. E dirigimo-nos para a sala escura onde passa o filme de homenagem a Agostinho Neto, realizado após a sua morte, em 1979.
"É uma exposição que incide muito no trabalho de cinema", explica Isabel Carlos, anterior diretora do CAM, que assim se despede da instituição, e curadora desta exposição em parceria com Rita Fabiana. Essa atenção à imagem em movimento numa exposição estava por fazer e ficou fora da exposição antológica que se realizou em 2003 na Culturgest, em Lisboa.
Esse primeiro filme é dedicado a Agostinho Neto, foi realizado em 1980, após a sua morte. "Toda a gente está a usar a imagem documental, mas tu já usavas", assinala Isabel Carlos, na sala escura onde passam as imagens desse tributo ao primeiro presidente de Angola. Agostinho Neto em 1961 mescla-se com imagens da floresta do norte de Angola e com os seus poemas. E, na sala ao lado, um trabalho sobre os 'Ngola Ritmos, "músicos fundamentais para descobrir o nacionalismo angolano", resume o artista, durante a visita à imprensa, lembrando os tempos em que era realizador da televisão de Angola.
Foi com esse filme de tributo a Agostinho Neto que António Ole se candidatou à escola de Cinema de Los Angeles, a outra cidade do título. "Fiz uma reflexão, à distância, de Angola, das raízes". Há um antes e um depois dos EUA. António Ole vai mais longe: "Sem viagem não há obra".
Em Luanda, foi para o Arquivo Histórico de Angola, fotografou assentos de escravos, usou essas imagens em inúmeras obras. A começar por Broken Pages, Stolen Bodies, um conjunto de quadros que parecem semelhantes: o mesmo corpo, um prato, um copo, a que se vai acrescentando um detalhe distinto. "Quero esmiuçar bem o passado porque sem o fazer não podemos avançar", diz.
É disso que fala também uma das suas obras mais aclamadas, Broken Boat (Canoa Quebrada), que foi emprestada pelo Museu Nacional de Arte Africana do Smithsonian Institute à Gulbenkian. "É um barco construído por mim, duas metades, de um lado tijolo e do outro relatórios da polícia", explica. Os corvos empalhados são fertilidade e foram recolhidos dos despojos de uma inundação no Museu de História Natural de Angola.
Essa recolha que vai fazendo -- assento de escravos com as suas características, relatórios de polícia, animais empalhados, os pedacinhos de poster do seu bairro que foi colecionando até compor um mural de rostos (2014). "Rastos e rostos", na descrição do artista. É uma peça em conversa com os 'restos' do atelier de António Ole em Los Angeles (1985) e o Township Wall da cidade de Dusserldorf composto para o Africa Remix, em 2004. Uma série de painéis que foram a sua marca até esta exposição. "É um artista muito internacionalizado a partir dos anos 90", contextualiza a curadora Rita Fabiana.
As primeiras obras de Ole não diziam nada sobre África. "Eram marcadas pela Europa", assinala Isabel Carlos. O movimento pop está bem escrito nesses trabalhos. E, na nave central da Gulbenkian, estas obras encaram de frente com outro trabalho "de jovem e muito rebelde", em que se insurge contra a proibição do uso da pílula ("achava um pouco cínico") por parte da Igreja, usando técnicas da banda desenhada, influenciado por outro jovem pintor da época, Batarda Fernandes "que todos hoje conhecem como Eduardo Batarda). Deu que falar em Luanda. O movimento nacional feminino criticou o quadro, foi proibido da exposição de arte moderna. "Isso encheu-se de importância". Ri-se. O Maio de 68 era recente. "Deu-nos a oportunidade de abordar temas novos".
Novidades que diz continuar a procurar, como procura "trabalhar todos os dias", seja pintar, fotografar, escrever um guião para um vídeo... Assume que gosta de romper. "Sinto que faço as coisas umas contra as outras". "A racionalidade e a coerência não me interessam nada".
Luanda-Los Angeles-Lisboa é a primeira exposição do artista no Centro de Arte Moderna, coleção em que o artista luso-angolano não está representado. "É uma situação que poderemos vir a rever", diz a co-curadora Rita Fabiana. Ole preenche os dois requisitos principais para pertencer ao acervo do CAM, uma instituição que visa representar artistas portugueses ou ser uma memória da sua programação.