Lourdes Castro
Maria Helena Vieira da Silva disse da muito jovem Lourdes Castro tudo o que viria a definir o seu carácter: "Ela alia a um carácter extremamente honesto e reto, fortes qualidades de dedicação, coragem e até heroísmo na sua via quotidiana. E especialmente é dotada de real e tangível talento artístico. Poucos jovens pintores portugueses em Paris nos têm inspirado tanta confiança e esperanças." Conheci-a pessoalmente graças ao meu amigo José Tolentino Mendonça, quando recebeu o Prémio Árvore da Vida Padre Manuel Antunes. Foi em julho de 2015, à sombra do "Anjo de Berlim", na Capela do Rato, um encontro inesquecível. "Quando o Tolentino me pediu para fazer alguma coisa para aqui tinha de ser mesmo isto. Lembrei-me que já tinha o anjo..." E luziram-lhe os olhos quando lembrou a primeira exposição, com 24 anos, no Centro Nacional de Cultura, ao lado José Escada. Só depois seria a do Clube Funchalense, em 1955. E diz: "Grava sempre a alegria na fachada da tua casa." Quem viu a primeira apresentação, logo notou a sensibilidade fina e a segurança técnica, numa forte personalidade.
Mas tinha de partir. O ambiente era fechado e pobre. Em 1957, encontramo-la com René Bértholo, Costa Pinheiro e Gonçalo Duarte em Munique, e no ano seguinte em Paris, bolseira da Gulbenkian. Foi então que Maria Helena Vieira da Silva fez a apreciação referida em carta a Artur Nobre de Gusmão. Em 1958 nasceu a KWY. Formam o título as três letras que não tinham lugar no alfabeto português. A revista podia ultrapassar fronteiras sem se submeter à censura prévia. Era uma carta aos amigos "com o desejo de poder experimentar, explorar, combinar, inventar novos territórios, novas margens, novos ritmos, apresentando uma total liberdade". Não era uma revista portuguesa, era uma marca cosmopolita, para abrir horizontes. "Havia muito divertimento no verdadeiro sentido, ou seja, coisas diversas, o que nos unia não eram as tendências estéticas, o estilo de cada um, mas sim o facto de sermos todos amigos, e tão amigos éramos que, mesmo depois de tantas coisas passadas, ainda hoje somos amigos." Lourdes Castro, René Bértholo, Costa Pinheiro, José Escada, João Vieira, Gonçalo Duarte, Jan Voss e Christo - o grupo é marcante. Estamos diante do que há de melhor.
A exposição da Sociedade Nacional de Belas-Artes de 1960 causou espanto, com a jovem artista ao lado dos seus companheiros, dando um sinal de frescura e novidade. Mas em 1961 Lourdes abandona os suportes tradicionais e aposta na criação de objetos construídos com bens de consumo de uso corrente aglomerados em caixas com cobertura de tinta uniforme. E as sombras surgem, como dirá a Manuel Zimbro: "Foi com a serigrafia que vieram à luz as minhas primeiras sombras. Fazia colagens e querendo realizar obras impressas coloquei os primeiros objetos sobre a seda pré-sensiblizada. Obtive assim as primeiras sombras projetadas" - representadas em vários materiais (tela, plexiglas, lençóis). E depois de ter feito sair da sombra as sombras e de lhes ter dado cor, as pesquisas continuaram e multiplicaram-se, "no teatro das sombras", pondo-as em movimento. "A sombra é isso: tem tudo o que tem o objeto, mas o mínimo possível para ser reconhecido", não a imagem fotográfica. É o contacto com o Nouveau Réalisme, pelo qual procurou trazer a realidade física e material para a linguagem plástica. E ao longo das exposições em que a artista participa nota-se que em cada momento há um novo passo. Daí a evidente maturidade na retrospetiva da Fundação Gulbenkian de 1992 e na representação de Portugal na XVIII Bienal de São Paulo ou nas duas grandes exposições O Grande Herbário de Sombras em 2002, também na Gulbenkian, e em Sombras à Volta de Um Centro em Serralves (2003). E sentimos a vivência do lema: "Caminha como o teu coração te leva." Era assim Lourdes Castro.
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian