Lonnie não deixou de chorar a pancada da vida, aprendeu a cantá-la

O escultor e músico americano que aprendeu a dar forma à sua vida mirabolante atua no próximo sábado no Musicbox, em Lisboa, num concerto integrado no festival Jameson Urban Routes
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O mínimo que pode ser dito acerca de Lonnie Holley é que é um homem particular. O escultor e músico americano que no próximo sábado, dia 29, subirá ao palco do Musicbox para um concerto no penúltimo dia do festival Jameson Urban Routes - que começa na segunda-feira e termina no domingo seguinte - trará a Lisboa a sua voz que entoa palavras de cada vez improvisadas, acompanhada pelas mãos que tocam o teclado de forma pouco ortodoxa. E que ninguém estranhe se o vir deambular pelas ruas e recolher aquilo que aos olhos da maioria é lixo ou tralha. Para ele, pai de 15 filhos, é material de trabalho. Trabalho como as suas esculturas que integram hoje as coleções de museus como o nova-iorquino Metropolitan Museum of Art ou o Smithsonian, em Washington.

Há quem diga que a sua infância podia ter sido escrita por Charles Dickens. Nascido em 1950 num Alabama segregacionista, Estados Unidos, é o sétimo de 27 irmãos e a mãe entregou-o a uma mulher que deveria tomar conta dele apenas por alguns dias, já que ela ainda estava a amamentar outro dos seus filhos. A mulher, bailarina de burlesco, acabou por desaparecer com a criança que haveria de ter quatro anos quando esta a vendeu por uma garrafa de whisky a uma mulher num bar, que o adoptou com o marido.

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Lonnie haveria de fugir anos depois e regressar à sua casa em Birmingham, no Alabama. Mas aqui avisa: "Alguns anos depois voltei a ver a minha família, mas depois de passar por algumas experiências duras." Entre elas um acidente que quase o matou. Aos onze anos estava na rua quando foi apanhado pela polícia e preso num campo de trabalho para a juventude.

Falamos por Skype, ele está do outro lado do Atlântico. Matt Arnett, o seu manager, e filho de Bill Arnett, o colecionador de arte que descobriu Lonnie, vem também à conversa. Perguntamos por que razão ele foi preso e espancado quase até à morte depois de tentar fugir. "Por ser um rapaz negro", diz Matt.

Depois, a avó de Lonnie, que como o resto da família não saba do paradeiro do neto, encontrou-o e levou-o para casa, não havia motivos legais para o manter preso. Outro dos rapazes que esteve preso naquele campo foi Satchel Paige, negro e um dos grandes jogadores de basebol dos EUA. Matt começa a contar: "Ele dizia: "Sim, foi mau, mas foi ali que aprendi a atirar uma bola rápida." Ambos encontraram uma forma de..." Aqui Lonnie interrompe-o: "Agarrar nessas experiências e crescer com elas. Acho que nunca se deixa de chorar a pancada que se recebe numa instituição destas. Acho que nunca deixei de chorar, porque agora consigo cantá-lo em vez de me sentar num canto de minha casa a pensar naquilo até que me leve às lágrimas. Agora consigo cantar sobre isso, e esperançosamente conseguirei dizer algo aos jovens."

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Evoca Marvin Gaye e a sua canção What"s Going On para dizer que a sua geração tem contado e feito eco das experiências que teve. Mas a história de Lonnie Holley não pode ser contada meramente através de uma geração. Nem todos apanharam algodão em plantações, recolheram lixo num cinema ao ar livre, ou tiveram como primeira obra duas sepulturas para dois sobrinhos bebés que acabavam de morrer numa família sem dinheiro para as comprar. Lonnie fê-las a partir de arenito.

Começou a fazer arte quando tinha 29 anos. "Acho que interiormente fui sempre um artista. Foi um amigo meu, Bill Arnett, historiador de arte que me disse que o que eu estava a fazer era uma forma de arte. Eu sempre reparei nas formas. Tralha, lixo, estilhaços, sempre os vi como material que estava lá para ser trabalhado. Pegar numa coisa e pensar há quanto tempo anda ali, quem fez o quê àquilo..." conta no seu tom pausado e sotaque sulista. Evoca uma série de vezes a "mãe Terra", pois há muito que Lonnie fala das questões ambientais, muito antes de elas estarem em cima da mesa na ordem do dia.

Quanto à música, que diz "siamesa" da sua arte escultórica, afirma que sempre cantou. Além disso, acrescenta: "Havia sempre música à minha volta durante todo o meu crescimento, de todos os géneros. E a minha mãe e os meus avôs cantavam." Por vezes, ouvir Lonnie a cantar as frases que vai improvisando em catadupa faz parecer que estamos a ouvir os arquivos de Alan Lomax, com os blues e a folk mais profundos da América. Mas a música de Lonnie também não é isso. "São sempre canções, e histórias, que levaram 66 anos a construir. Só que ele ainda não as escreveu, e não as vai escrever agora. Vai cantá-las, e no próximo espetáculo vai cantar algo diferente. Pode voltar à mesma ideia, mas não voltará às mesmas palavras ou metáforas. É como se ele estivesse a escrever um romance que nunca vai acabar", teoriza Matt.

Lonnie só começou a gravar na década de 70, por iniciativa de Matt, e começou por fazê-lo numa "igreja feita estúdio". Em 2012 lançou o seu primeiro álbum, Just Before Music, seguido de Keeping a Record of It, de 2013. No palco, conta, entra "em transe". E quando Matt lhe pergunta como correu cada atuação ele responde: "Diz-me tu, eu não estive lá." Assim será, quase de certeza, no sábado. No próximo dia 1 de novembro, Lonnie estará no Fórum do Futuro, no Porto, numa conversa com o também músico Laraaji, moderado pela rapper Capicua.

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