Lockerbie volta aos tribunais 19 anos depois
Tripoli pretenderá indemnizações de 40 mil milhões
O coronel Mohammar Khadafi aguarda com ansiedade aquela que poderá ser a próxima oportunidade para reabilitar a imagem do regime líbio face à comunidade internacional. Um mês depois de o líder ter extraditado os sete profissionais de saúde búlgaros condenados à morte, o Supremo Tribunal escocês vai reabrir nas próximas semanas o processo do atentado de Lockerbie - que valeu a Tripoli mais de uma década de sanções diplomáticas. No fim de Junho, e após mais de três anos de investigações, a Comissão de Revisão de Processos Criminais escocesa concluiu que a condenação à prisão perpétua em 2001 do bombista do voo 103 da PanAm poderá ter-se tratado de um erro judicial.
Num relatório de 800 páginas, o organismo independente reconheceu como inválidas algumas das provas que apontavam para a implicação do agente dos serviços secretos líbios, Abdelbaset Ali Mohamed al-Megrahi, no atentado à bomba que provocou a morte de 256 passageiros e 11 habitantes da localidade escocesa de Lockerbie em 1988.
Contactado pelo DN, Tony Kelly, advogado de Megrahi, confirmou que o exame da comissão às provas do processo põe em causa o testemunho de um empregado de uma loja em Malta, onde teria sido comprada uma camisa utilizada para envolver a bomba do atentado. O organismo judicial independente considerou que a testemunha poderá ter-se enganado ao ter reconhecido Megrahi como o cliente a quem vendera a peça de roupa no início de Dezembro de 88. Segundo os investigadores, a mala armadilhada tinha sido embarcada no aeroporto da ilha com destino a Frankfurt, de onde foi transferida para o voo 103 da PanAm. O depoimento do lojista era até hoje a única prova da responsabilidade directa do líbio no atentado.
Temporizador manipulado?
No relatório, a comissão judicial escocesa rejeitou no entanto as "teorias da conspiração" que apontam para a falsificação de provas para incriminar a Líbia, ou a intervenção dos serviços secretos norte-americanos na investigação. Mas um novo dado veio, nas últimas semanas, sustentar a tese de que as provas poderão ter sido manipuladas.
Ullrich Lumpert, um antigo engenheiro electrotécnico suíço, quebrou o silêncio de décadas, para pôr em causa a autenticidade de uma das principais provas do processo de Lockerbie - um fragmento de temporizador de bomba descoberto entre os destroços do Boeing da PanAm. A peça - fabricada pela empresa suíça MEBO e alegadamente vendida à Líbia - tinha sido apresentada em 2001 ao tribunal internacional que julgou o caso na Holanda, como a prova da implicação de Tripoli no atentado. Mas, numa confissão feita frente às autoridades suíças nos finais de Junho, Lumpert afirmou que o temporizador MST-13, tinha sido fornecido por ele aos investigadores escoceses para análise, dois anos após o atentado. A peça-chave do julgamento tratar-se- -ia de um protótipo fabricado por Lumpert, que não fazia parte do lote de temporizadores vendido em 1985 pela MEBO aos serviços secretos líbios. Contactado pelo DN, o director da empresa, Edwin Bollier, que sempre contestou a autenticidade das provas que incriminavam a sua empresa e a Líbia, afirma: "A justiça escocesa falsificou as provas duas vezes. A primeira, quando me mostrou em 99 um fragmento do temporizador que parecia ser fabricado pela minha empresa, mas não do mesmo lote que vendi à Líbia, e a segunda vez, quando, dois anos depois, frente ao tribunal mostrou o mesmo temporizador totalmente carbonizado e irreconhecível". Bollier sustenta que "o lote que fornecemos à Líbia em 85 tinha os circuitos integrados de cor verde, e aquele aparentemente descoberto nos destroços do avião tinha os circuitos castanhos, da mesma cor que os protótipos fabricados pelo Sr. Lumpert e que não estavam funcionais." O empresário, que não esconde ter vendido temporizadores de bomba à Líbia e à antiga polícia secreta da Alemanha de Leste - Stasi -, quer confrontar nas próximas semanas a justiça escocesa com a confissão do seu ex-empregado. Depois de ter requerido a ajuda da polícia suíça, Bollier vai pedir uma nova perícia às provas, em presença de Lumpert e de peritos em armamento. A confissão do engenheiro suíço não foi, no entanto, até agora, entregue ao advogado escocês Tony Kelly, para ser incluída no pedido de recurso da condenação do bombista de Lockerbie. Kelly afirma: "Não recebi qualquer documento de Lumpert, e o meu caso é antes de mais de um cidadão líbio que poderá ter sido condenado injustamente, e não a defesa da Líbia." As revelações de Lumpert terão sido ocultadas aos juízes, "por receio de represálias, face à importância dada à prova durante o processo", segundo Bollier. A ser confirmada a manipulação do protótipo do temporizador como prova, este poderá ser o elemento tanto esperado pela Líbia para provar a sua inocência. Edwin Bollier, que partilha o seu escritório de Zurique com um advogado líbio que trabalha no caso, afirma que, se Megrahi for inocentado, "a fundação do filho do coronel Khadafi vai obviamente pedir para ser reembolsada dos 2,7 milhões de euros pagos a título de indemnização às vítimas de Lockerbie, assim como dos 30 a 40 mil milhões de euros de prejuízos pelos anos de embargo imposto pela ONU a Tripoli na sequência do atentado". O empresário suíço, hoje à beira da bancarrota, é alvo de um processo da companhia PanAm, que lhe exige uma indemnização de 32 milhões de dólares por perdas e danos.
À procura de um culpado
A investigação e o julgamento do atentado frente a um tribunal internacional na Holanda, entre 2000 e 2001, alimentaram várias críticas nos últimos anos, vindas mesmo dos familiares das vítimas. Nos dias que se seguiram ao atentado, fontes dos serviços secretos norte-americanos apontavam o egípcio Mohamed Abu Talb como o autor do ataque. O operacional da Frente Popular para a Libertação da Palestina - Comando Geral, um grupo apoiado pela Síria e o Irão, pretenderia, segundo alguns analistas, vingar o ataque norte-americano a um Airbus da Iran Air que, cinco meses antes de Lockerbie, e oficialmente por engano, tinha matado 290 passageiros a caminho de Meca. O líder iraniano, o ayatollah Khomenei, tinha na altura prometido uma "chuva de sangue" para retaliar o ataque. As acusações contra o grupo palestiniano viriam, meses mais tarde, a ser desmentidas por Washington, sem que nunca tivessem sido esclarecidas. Pressionada pela comunidade internacional, a Líbia tinha reconhecido oficialmente em 2003 a implicação dos seus agentes dos serviços secretos no atentado, aceitando o pagamento de indemnizações às vítimas, embora Tripoli reclamasse a extradição de Megrahi. Uma exigência reiterada desde a primeira hora das negociações internacionais para libertar as seis enfermeiras búlgaras e o médico palestiniano, condenados à morte na Líbia em 2000. Numa entrevista, em Agosto, ao jornal francês Le Monde, o filho do coronel Khadafi, Saif al-Islam, afirmava existir uma ligação entre o caso Megrahi e a extradição dos profissionais de saúde, negada no entanto por vários líderes europeus. No entanto, em Maio, Ingla- terra e Líbia assinavam um acordo para a extradição de prisioneiros que poderá abrir caminho a um eventual regresso de Megrahi a Tripoli. Fica por saber se, quase 20 anos após o atentado, a versão oficial, a ser reescrita pelos tribunais escoceses, incluirá o reconhecimento de eventuais erros ou manipulações durante o inquérito.