"A glória e seu cortejo de horrores", editado pela Companhia das Letras, narra as desventuras de Mário Cardoso, um ator de meia-idade, amado pelo público graças aos papéis como galã de telenovela, mas que acaba por cair em desgraça quando decide reconquistar o prestígio junto da elite intelectual, encenando uma das grandes peças de William Shakespeare. .Vários contratempos levam a um desfile de horrores na vida do ator, que começa com o fracasso da sua versão de "Rei Lear", acompanha a demência da mãe e termina numa prisão..O livro atravessa diversas fases da carreira de Mário -- e, simultaneamente, da história recente do Brasil -, as suas lembranças de juventude no teatro político, a incursão pelo Cinema Novo dos anos 1960, a efervescência hippie do Verão do Desbunde, o encontro com o teatro de Tchékhov e a glória, como um dos atores mais famosos de uma época em que a televisão dava as cartas no país.."A glória e seu cortejo de horrores" retrata uma geração e, na pele de Mário, o leitor assiste à derrocada das ilusões, num mundo cada vez mais rendido às aparências, e num Brasil onde o Teatro tem vindo a perder toda a força que tinha no final do século passado, contou a autora durante a apresentação do livro em Lisboa.."O livro partiu de uma dúvida: por que é que o teatro perdeu a potência que tinha quando eu tinha 20 anos? Entre o final do século passado e o início do terceiro milénio, o teatro perdeu força", afirmou..Para construir o enredo, Fernanda Torres serviu-se de episódios da sua vida, que transpôs para o romance, desde logo, o famoso "Rei Lear" que interpretou quando era ainda muito jovem..A peça, em que Fernanda Torres interpretava Cordélia, foi encenada num "teatro de shopping", mas "era tão extensa", que a atriz passava horas fora de cena.."Entre as atuações, passava-se tanto tempo que eu ia passear no shopping, jogar pinball, e chegou uma altura em que comecei a ir a casa jantar com o meu marido, e depois voltava, mas já me sentia fora daquilo tudo. Um dia cheguei, vi-os todos vestidos e tive um ataque de riso", relembrou..Decidiu então pôr essa experiência no livro: "Mário é obrigado a parar o Rei Lear porque é acometido por um ataque de riso. O primeiro capítulo é totalmente dedicado a essa montagem do Rei Lear"..A partir desse momento, a sua vida é uma linha descendente até terminar na prisão a fazer "pegadinhas", conta a autora, não sem admitir a dificuldade que sentiu: "Eu achava que Mário deveria caminhar para a prisão, mas não sabia se era crível e eu não conhecia a prisão"..Então pediu ajuda a um deputado, especialista em direitos humanos, e na sua companhia visitou uma prisão em São Cristovão, no Rio de Janeiro, com "100 presos por cela", onde contactou com uma ala evangélica muito forte, "a ala mais linda e decorada, pintada com passagens da Bíblia". Foi dessa experiência que nasceu a ideia de "Mário arranjar emprego numa novela bíblica"..Tal como no seu primeiro romance, "Fim", a autora voltou a escolher personagens masculinas.."Porque a personagem masculina me põe logo na ficção, porque é tão longe de mim", mas também a "desgraça masculina" dos últimos tempos foi motivo quase óbvio para "colocar um homem fracassado no centro da história".."Gosto da falha humana, dá excelente literatura. O homem era soberano e agora está a apanhar muito, eu sou solidária com os homens", afirmou, explicando como as suas maiores influências literárias foram homens..Por um lado, o escritor João Ubaldo Ribeiro, de quem Fernanda Torres interpretou "A Casa dos Budas Ditosos", num monólogo que a obrigou a decorar o livro todo e a "ensinou a escrever"..Nessa altura, comunicava-se por escrito com Ubaldo Ribeiro, e quando lhe contou que fora convidada para escrever crónicas, ele respondeu-lhe: "Não faça isso, o mundo literário é horrível"..Outra influência masculina é a do pai, o ator Fernando Torres, um homem que recorda como sempre tendo arriscado, mas também com "um mau humor terrível, que está muito nos personagens, está muito no Mário e nas figuras masculinas"..Já o título deve-o à mãe, a atriz Fernanda Montenegro, que, na altura em que foi nomeada para um Óscar costumava dizer aquela frase, "porque todos os atores sabem que a glória vem sempre acompanhada de um cortejo de horrores", contou..Depois de dois romances e de passar os últimos anos a "escrever muito", Fernanda Torres prepara um próximo ano mais dedicado à atuação.