Livro de cheiros
Estranho mundo este, o das sensações que trazem atrás de si certezas absolutas. Com esta obra de Eka Kurniawan, escritor indonésio nascido no dia em que o seu país ganhou a certeza de que iria anexar o território de Timor-Leste por este ter declarado a independência, aconteceu--me o mesmo que sucede diante da luz de Lisboa, mais a de Paris e a do Rio de Janeiro. Cada uma delas é única, magnífica, memorizável para se tornar imediatamente reconhecível. Repete-se a mesma situação, mas apontando a outro sentido, com a música dos Smiths (verdadeiros cometas do universo pop) ou dos Rolling Stones (que vieram para ficar e, pelo andar da carruagem, acabarão a fazer transmissões de concertos a partir de um qualquer lar de idosos). E há ainda uma extensão para os filmes de Robert Altman ou para os livros do (agora famoso) Kazuo Ishiguro. Não há possibilidade aberta para a confusão ou para o erro - sabe-se imediatamente de onde vêm, cada uma ao seu jeito.
Com Homem-Tigre, escrito em 2004 e adotado pelo mundo ocidental anos depois quando chegou a ser candidato ao Man Booker Prize (e foi a primeira vez que tal ocorreu com um autor indonésio), a questão é outra: o que marca os ritmos, o que define aos poucos as personagens de uma história que toca sobretudo duas famílias, ligadas por um "pecado" que vai desencadear o momento--chave da narrativa, o que nos prende à leitura, e de forma irremediável, são os cheiros. Não se pense, no entanto, que há aqui um qualquer fio que toca na velha expressão, tão verdadeira como banalizada, que nos remete para "o cheiro dos livros". Nada disso: aquilo que Kurniawan consegue é fazer-nos chegar - de uma forma que só realismo mágico consegue justificar - o perfume das flores e dos frutos, o cheiro nauseabundo do lixo e do podre, os odores inquietantes do sexo e da morte, a pestilência das águas paradas e dos pântanos, a brisa que tanto nos chega do mar como das fontes, a grandeza gustativa dos vapores que emergem dos cozinhados. É uma dimensão especial, de que o escritor parece fazer gala, deixando sinais distintos e adequados a cada momento.
O "resto", que é quase tudo, vai saltando de vidas que parecem corriqueiras, tão difíceis (aproximando-se muitas vezes da simples sobrevivência) como multifacetadas. Entre duas casas de uma terra recôndita, atrasada, nos antípodas das grandes metrópoles, vão sendo levantados, e a preceito, os grandes temas - a família e as suas múltiplas disfunções; a violência doméstica, quase indiscriminada, com clara desvantagem para os dois homens que não são apresentados como machos alfa, mais do que qualquer outra coisa; a falência e o sacrifício das paixões; as fronteiras da loucura (desde uma mulher que conversa com os utensílios de cozinha a um rapaz que incorpora um tigre-branco, herdado do avô, de instintos primários e assassinos); a luta de classes, muito mais do que o conflito de gerações. O talento maior de Eka Kurniawan talvez resida nisto, que nada tem de óbvio ou de automático - na capacidade de, num cenário improvável, fazer nascer, crescer e frutificar uma história que nunca parece deslocada, nem exagerada, nem diminuída, nem suscetível de sugerir o encolher de ombros e o passar adiante.
Só não consegue - nem queria, provavelmente - desligar tudo o que acontece, e é muito mais do que um violento assassínio à dentada, de um ambiente muito próprio, que nos passa a ideia de que o autor nunca precisou de sair "de casa" para chegar onde pretendia. Deixa, por muito tempo, o perfume de uma obra-prima, cheira-me.