Live Aid para a Igreja. Como João Paulo II inventou a Jornada Mundial da Juventude
Ao declarar no dia 1 de janeiro de 1985 como o Ano Internacional da Juventude, o então Secretário-Geral da ONU, Javier Pérez de Cuéllar, não teve tarefa fácil - o mundo estava dividido em dois blocos antagónicos: o oriental e o ocidental, chamados coloquialmente por "comunista" e "capitalista". A campanha tinha por objetivo reconciliar os jovens dos dois lados, encorajá-los a aderir aos esforços de paz, convencê-los de que a juventude podia mudar o mundo e tornar a política credível. No entanto, a iniciativa da ONU, hoje quase desconhecida, revelou-se pouco credível logo no início, quando foi anunciado o nome do presidente do Ano Mundial da Juventude. Tratava-se de Nicu Ceausescu, filho do líder comunista romeno Nicolae Ceausescu, que no seu país era ainda mais odiado do que o seu pai ditador. O Ceausescu júnior não só tinha na sua consciência numerosos crimes e abusos de poder, como também, sendo filho de um déspota, sempre ficava impune.
Vindo, tal como Ceausescu, do Bloco de Leste, o polaco Karol Wojtyła tinha uma ideia diferente para os jovens e também respondeu à iniciativa do chefe da ONU. No sétimo ano do seu ministério papal como João Paulo II, propôs a criação de encontros cíclicos de jovens numa cidade. O início foi modesto. Em Roma, em março de 1985, reuniram-se 300 000 jovens, sobretudo italianos, e o Papa publicou uma carta aos jovens intitulada Dilecti Amici. Na cabeça tinha já a ideia de promover encontros de jovens, fora de Roma, que servissem para aprofundar a sua fé, para encorajar uma luta romântica pelos ideais do cristianismo, utilizando formas de expressão atrativas: a música e o teatro. Tratava-se de um intercâmbio - os jovens deviam conhecer melhor a Igreja e vice-versa. João Paulo II acreditava que a revolta, tão natural nos jovens, podia ser criativa. A prova disso apareceu em breve. Foram os concertos de beneficência Live Aid, realizados quatro meses depois em estádios de Londres e Filadélfia. Reuniram no dia 13 de julho de 1985 mais de 160 000 jovens em frente ao palco, quase dois mil milhões de pessoas em frente aos seus televisores e contribuíram significativamente, através de generosas recolhas, para a luta contra a fome em África. Entre os principais organizadores e artistas do Live Aid encontravam-se bandas britânicas do estilo New Romantic, como os Ultravox e os Spandau Ballet, entre outros. Para além dos seus sintetizadores típicos, os "Novos Românticos" chamaram a atenção para a confusão e a solidão do homem ocidental do final do século XX, enredado no materialismo. Tal como os artistas da época do Romantismo do século XIX, vários músicos em meados da década de 1980 apontavam para a necessidade de desenvolvimento espiritual. "Na altura, eu era ateu. A minha conversão deu-se durante uma peregrinação a Assis com Nick Beggs, baixista da banda Kajagoogoo" - terá dito anos mais tarde o líder da banda Classix Nouveaux, Sal Solo. Não esteve no Live Aid porque tinha abandonado o New Romantic meses antes para cantar "apenas sobre Cristo".
"Foi em meados dos anos 80, num dos concertos no Reino Unido. Estava em frente ao palco onde Sal Solo estava a tocar antes da exibição dos Queen. Não gostei da atuação dele. Impaciente, atirei-lhe garrafas de plástico, tal como os meus colegas. Anos mais tarde encontrámo-nos na aldeia francesa de Taizé num retiro: ele como músico cristão, eu como monge", recorda com embaraço um dos irmãos da comunidade ecuménica de Taizé, no leste de França. Segundo o jornalista e padre polaco Adam Boniecki, foram as atividades destes monges cristãos que a partir da segunda parte do século XX organizam regularmente encontros para os jovens. Isto foi um protótipo da JMJ. O sacerdote de Cracóvia, que conheceu bem João Paulo II e o fundador da comunidade de Taizé, o irmão Roger Schütz, não têm dúvidas de que Wojtyła se inspirou nas experiências desenvolvidas por esta comunidade de origem francesa. Com esta opinião também concorda um antigo voluntário em Taizé, Peter Balun, hoje funcionário da administração pública na Eslováquia. Sublinha que na aldeia francesa decorrem a um ritmo semanal os encontros de oração e reflexão para jovens. Além disso, desde finais dos anos 70 a comunidade de Taizé organiza, no final do ano, numa cidade, Encontros Europeus de Jovens (em dezembro de 2004, realizou-se em Lisboa com a participação de 40 mil jovens). "O Papa tinha preparado um projeto semelhante de grande dimensão para os jovens católicos do mundo inteiro. Em ambos os casos o objetivo é de converter os jovens a Cristo e preencher o vazio espiritual que existe em muitos. Ao fazê-lo, mostram simultaneamente a universalidade da Igreja - acrescenta Balun falando ao DN.
O dia 20 de dezembro de 1985 é considerado como a data oficial do nascimento das JMJ. A ideia foi lançada numa reunião entre João Paulo II e os funcionários do Vaticano. O Papa apresentou um plano de levar encontros de jovens para fora da Roma. Era preciso, segundo o Papa, pôr a Igreja a caminho dos jovens num mundo cada vez mais semelhante a uma aldeia global. Mas antes de organizar a primeira edição das JMJ fora da Europa, que teve lugar em Buenos Aires em 1987, o Papa viajou em 1986 para a aldeia francesa Taizé, provavelmente a mais pequena localidade visitada no estrangeiro durante os seus mais de 26 anos de pontificado. Nessa aldeia, habitada por apenas 100 monges, estavam milhares de jovens à espera do João Paulo II. Não foi algo surpreendente, na medida em que os jovens já vinham regularmente a Taizé desde a década de 1960 para retiros semanais. Wojtyła conhecia bem este fenómeno, pois já como bispo de Cracóvia tinha visitado Taizé duas vezes, e desde o Concílio Vaticano II encontrava-se regularmente com o irmão Roger e os seus monges em várias partes do mundo. A comunidade fascinava-o pelo seu testemunho de vida segundo o Evangelho. Inicialmente vivendo apenas da agricultura e da olaria, os monges de Taizé utilizavam o dinheiro que ganhavam para ajudar os pobres e acolher os jovens. O número de jovens começou a crescer, especialmente depois do verão de 1968, marcado pelas revoltas juvenis. No início da década de 1970, começaram os preparativos em Taizé para um grande encontro de jovens cristãos, segundo o modelo do Concílio Vaticano II. Durante o evento, os jovens iam rezar juntos, partilhar o seu testemunho e debater sobre a reconciliação e o trabalho conjunto na Igreja. O evento foi chamado de Concílio de Jovens e fez com que, na primavera de 1974, chegassem a Taizé milhares de jovens de diferentes países, assim como adultos para partilhar as suas experiências de fé e vida com os mais jovens. Entre eles esteve a portuguesa Maria de Lourdes Pintasilgo. Foi em Taizé que a conhecida ativista católica recebeu a notícia sobre o início da Revolução dos Cravos. Cinco anos mais tarde, tornar-se-ia primeira-ministra.
Desde o início das JMJ, João Paulo II apelou aos jovens para que assumissem tarefas importantes no local onde vivem e para que se envolvessem nos assuntos públicos, não para seu próprio benefício, mas para o bem comum: no Estado, no município, na paróquia, na comunidade local. O Irmão Roger, frequentemente de visita em Roma, concordava e ainda antes do lançamento das JMJ encorajava em Taizé os jovens para não se afastar de responsabilidades na sociedade. A própria aldeia francesa foi para João Paulo II um sítio onde se podia inspirar um jovem à procura da sua vocação. Durante a sua reunião com a Comunidade de Taizé, em 1986, o Papa deu o exemplo da aldeia francesa como "a fonte", à qual um peregrino sedento chega para ganhar força e avançar no cumprimento da sua vocação. "As JMJ, tal como Taizé, tornaram-se precisamente um desses sítios para procurar os seus talentos e o seu lugar no mundo. Através deste evento, João Paulo II conseguia reunir num só recinto a Igreja jovem de todo o mundo, para que também pudesse descobrir e aceitar a diversidade cultural do mundo. Mas, acima de tudo, o Papa quis colocar os jovens junto de Cristo", disse ao DN o padre Vincent Lumano, da diocese de Hwange, no Zimbabwé, lembrando que a comunidade de Taizé ajuda a organizar o evento desde a primeira JMJ.
Através da sua relação com os jovens, João Paulo II influenciou o destino de países, sobretudo da Europa Central e de Leste. O padre Waldemar Pawelec, responsável pela participação dos jovens católicos da Ucrânia na JMJ de Lisboa, não tem dúvidas sobre este facto. Na sua opinião, partilhada com o DN, as JMJ, em particular a edição de 1991 na cidade polaca de Czestochowa, estimularam o crescimento da identidade nacional dos ucranianos. Foi ali que multidões de jovens do antigo Bloco de Leste e de países ocidentais se cruzaram pela primeira vez. O encontro teve uma dimensão especial, simbólica e histórica para os ucranianos, que na ida deixaram a União Soviética dominada pelo ateísmo rumando a Czestochowa, mas na volta regressavam já à Ucrânia, porque o país declarou a sua independência pouco depois do fim da JMJ - disse o clérigo de Kiev. Referiu que as sucessivas viagens dos ucranianos as JMJ, bem como a ida de João Paulo II à Ucrânia em 2001, especialmente o seu encontro com os jovens em Lviv, contribuíram para o crescimento da consciência nacional dos ucranianos. Apontou que também os encontros de uma semana em Taizé e os Encontros Europeus de Jovens organizados por esta comunidade, aos quais os jovens ucranianos se deslocavam regularmente desde a década de 1990, ajudaram na sua integração com os jovens dos países da UE. "Taizé foi para João Paulo II um exemplo, tendo nascido da experiência desta comunidade um modelo de organização para as JMJ. A ideia era celebrar a juventude e evangelizar. Conheço muitas pessoas que, nestas jornadas encontraram o seu caminho para a vida", concluiu o padre Pawelec.
A queda do Bloco de Leste e a abertura de fronteiras fechadas durante o regime comunista nesta parte da Europa impulsionaram a presença de jovens católicos nos encontros com o Papa. Milhões de pessoas começaram a participar nas JMJ e estas foram muito além da Europa. O recorde foi atingido em 1995, em Manila, onde estiveram junto de João Paulo II cinco milhões de jovens. O Papa, idoso e cada vez mais doente, atraía multidões de jovens como uma estrela de música ou de cinema na casa dos 30. Quando, na sua juventude, Wojtyła abandonou o teatro para optar pelo sacerdócio, nunca imaginou que podia magnetizar milhões no final da sua vida. Era impensável que se tornaria um ídolo para adolescentes. Para eles, os "adultos de amanhã", o Papa deixou uma mensagem muito pessoal em Berna. Em 2004, 10 meses antes da sua morte, já muito debilitado, disse a cada um deles: "Põe-te a caminho. Não te contentes em debater; não esperes por fazer algo de bom, por oportunidades que talvez nunca vão aparecer. O tempo da ação já chegou! (...). Vós, jovens, sois chamados a anunciar a mensagem do Evangelho com o testemunho da vossa vida. A Igreja precisa da vossa energia, do vosso entusiasmo, dos vossos ideais juvenis, para que o Evangelho possa penetrar no tecido da sociedade (...). Não é tempo de ter vergonha do Evangelho. Pelo contrário, é tempo de o proclamar sobre os telhados...".
Um outro encontro informal com milhares de jovens católicos de todo o mundo teve lugar nos últimos momentos da vida do Papa. Pouco antes de morrer, ao saber da multidão de jovens que se encontrava à janela do seu quarto no Vaticano, onde agonizava, João Paulo II disse: "Eu andava à vossa procura, agora vieram ter comigo..."