Um país que, em 1995, inaugurou um memorial ao músico e compositor norte-americano Frank Zappa, símbolo da liberdade criativa para muitos europeus sob a cortina de ferro, partilha pouco ou nada com um vizinho que não admite manifestações com uma simples folha em branco ou com um estado totalitário que tem no seu programa invadir uma democracia. A defesa dos direitos fundamentais, alimentada por uma história de ocupações e atrocidades por parte de polacos, alemães e russos, bem como pela respetiva resistência e luta pela independência, se não está gravado nos genes dos lituanos está pelo menos inscrito no manual político..Presidente e governo mantêm relações tensas, inclusive sobre quem deve representar o país, mas estão de acordo quanto a uma política externa sem medo de afrontar Moscovo ou Pequim..Na sexta-feira, ao lado dos homólogos da Roménia, Polónia e Letónia, o presidente Gitanas Nauseda condenou qualquer tentativa de normalização de relações enquanto "não houver uma mudança no regime russo" e defendeu o endurecimento da posição dos aliados face à Rússia com a aplicação de sanções que impeçam a continuidade da guerra. "Melhor do que ninguém, os países que vivem há séculos na vizinhança da Rússia sabem que o agressor não pode ser travado por concessões", afirmou..No mesmo dia, o chefe da diplomacia era recebido em Oslo. Gabrielius Landsbergis discutiu com a norueguesa Anniken Huitfeldt a criação de um tribunal especial para os crimes de guerra na Ucrânia, e apelou para que os europeus dupliquem os esforços de ajuda para "mais cedo a Europa começar a viver ao ritmo da reconstrução da Ucrânia e não ao ritmo da guerra"..Em 2020, saiu das urnas uma coligação conservadora chefiada por Ingrida Simonyte. Esta envolveu-se num braço de ferro com Nauseda sobre os papéis de cada qual no regime semiparlamentarista, mas o chefe de Estado não abdicou de representar o país no Conselho Europeu. Simonyte poderá ter perdido palco em Bruxelas, mas o governo não levou muito tempo até levantar ondas. Em maio de 2021, Vilnius anunciou o abandono de um fórum criado entre a China e os estados da Europa central e oriental, o chamado 17+1, tendo alegado que o acesso ao mercado chinês não tinha melhorado desde a criação da iniciativa, em 2012, e denunciado o seu caráter "divisivo"..Em substituição, sugeriu o formato 27+1, isto é, da UE no seu todo com Pequim. Meia dúzia de meses depois e o governo lituano enfurece o regime comunista ao permitir a abertura de um "escritório de representação de Taiwan" em Vilnius. A designação difere do costumeiro "centro económico e cultural de Taipé" que as autoridades da ilha Formosa se veem obrigados a usar nos países que reconhecem a República Popular da China (e por extensão não reconhecem a República da China, ou Taiwan)..Em retaliação, Pequim restringiu os contactos diplomáticos com a Lituânia, deixou de emitir vistos para o país e estrangulou as exportações lituanas para o país. Durante uma visita de deputados dos países bálticos a Taipé, um deles afirmou que Xi Jinping tinha "enviado palhaços" para atacá-los, em referência às críticas da imprensa estatal chinesa. "Devíamos chamar a China de República Popular da Comédia", afirmou Matas Maldeikis..O presidente Nauseda queixou-se de não ter sido ouvido pelo governo e discordou do nome usado pela embaixada de facto de Taiwan. O certo é que, há três semanas, a Lituânia retribuiu o gesto e abriu um escritório de representação económica em Taipé, embora o ministro da Economia tenha esclarecido que este desenvolvimento não representa o aprofundar de relações diplomáticas, mas comerciais.."Há simpatia a longo prazo, solidariedade. Estamos a sentir-nos de uma forma muito semelhante a Taiwan, de uma forma mais pequena, claro. Nós estamos ao pé da Rússia e eles estão ao lado da China", compara o ex-primeiro-ministro e atual deputado ao Parlamento Europeu Andrius Kubilius. Que vê nesta relação uma complementaridade à relação com Washington. "Vemos como a China e Taiwan são sensíveis aos nossos amigos nos Estados Unidos. Para nós, claro, as maiores preocupações são com a Ucrânia e a Rússia e para os americanos é a China e Taiwan. E estamos prontos a apoiar Taiwan tanto quanto possível, mas precisamos também de assistência norte-americana aqui. É assim que as coisas funcionam", disse..Citaçãocitacao"Para os lituanos as memórias da ocupação soviética e dos seus crimes infligidos na Europa Oriental são ainda muito recentes." Ausra Maldeikiene.Em relação à Rússia e à Ucrânia, a história e a geografia moldam a atitude de Vilnius. "Nunca tivemos quaisquer ilusões sobre a Rússia ter desistido das suas ambições imperialistas, mesmo depois do colapso da União Soviética. A Rússia nunca fez verdadeiramente a paz com o colapso da URSS", considera a eurodeputada Ausra Maldeikiene. E há anos que a Lituânia advertia para o perigo de Moscovo aos ocidentais intoxicados no gás e no petróleo russos. Desde pelo menos 2006, quando realizou uma conferência com os estados bálticos e do mar Negro sobre a necessidade de uma política comum e ouviu o então vice-presidente dos EUA Dick Cheney acusar Vladimir Putin de exercer "chantagem" à Ucrânia com o gás e o petróleo - um tema para o qual a Europa no seu todo aparenta estar hoje mais consciente..Kubilius recorda que a resposta à declaração da independência da Lituânia por Gorbachev passou por um bloqueio económico que cortou o fornecimento de energia. "Compreendemos o quão fracos éramos desse ponto de vista." Se enquanto primeiro-ministro inaugurou na primeira passagem pelo poder o terminal petrolífero, em 1999, em 2008, quando regressou, deu início à construção de um terminal de gás natural. Quando a invasão russa se deu já o país tinha cortado os laços com a Gazprom e inaugurara um gasoduto que liga a Finlândia à Polónia. Essa visão estratégica foi reconhecida pela NATO, que em 2012 inaugurou em Vilnius um centro de excelência de segurança energética..Com a guerra na Ucrânia a atingir um novo patamar ao ser lançada a "operação militar especial" de Putin, a presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen deu a mão à palmatória e reconheceu que os países bálticos deveriam ter sido ouvidos. O governo lituano não ficou à espera e esteve sempre na linha da frente na ajuda à Ucrânia: na assistência militar, até com a aquisição de drones por subscrição pública, na pressão internacional ao defender uma maior abrangência de sanções (protagonizou um dos momentos de maior tensão Bruxelas-Moscovo ao impedir o trânsito ferroviário entre Kaliningrado e o resto do território russo), e pediu uma zona de exclusão aérea, uma ideia rejeitada pela NATO e EUA..Outras iniciativas da Lituânia passaram pelo campo judiciário. Além de apoiar a criação de um tribunal especial para os crimes da Rússia na Ucrânia, foi o primeiro país a remeter o caso para o Tribunal Penal Internacional; instigou a formação de uma equipa de investigação de crimes de guerra na agência europeia Eurojust; e apoia o processo de genocídio da Ucrânia contra a Rússia no Tribunal Internacional de Justiça. Aliás, o seu parlamento aprovou uma resolução a declarar que o regime russo está a praticar genocídio na Ucrânia e outra a declarar a Rússia um estado terrorista..Num artigo publicado pelo Center for European Policy Analysis, os lituanos Dalia Bankauskaiteėe Dominykas Milasius advogam a ideia de que a Lituânia é um smart power (poder inteligente), em oposição às potências que usam ferramentas de hard power (coerção) ou soft power (influência) ao equilibrar a linha da política externa orientada por princípios e a linha de pensamento apoiada pelos interesses..Citaçãocitacao"Para nós sempre foi muito claro que a independência pode ser bem-sucedida se fugirmos da Rússia para o Ocidente." Andrius Kubilius."Talvez a nossa astúcia venha da nossa experiência", alvitrou Kubilius, em referência ao passado de resistência. Já Maldeikiene não se identifica com o rótulo. "Não se trata de ser uma potência inteligente, de ter uma política de negócios estrangeiros inteligente, trata-se de estar no lado certo da história. De facto, é bastante trágico que estejamos a considerar a política externa do ponto de vista do que foi considerado bem-sucedido ou do que prevaleceu. A questão moral, o dever de defender a vítima e de chamar a atenção para qualquer agressão deve ser o âmago de qualquer política, ponto final", disse a lituana ao DN.."Se um dia quisermos acordar no mundo onde a liberdade para vários povos e nações não é apenas um privilégio, mas um direito real, devemos chamar a atenção para quaisquer ameaças em qualquer lado. Como poderia alguém ousar sequer contemplar o preço do gás ou o volume do comércio face aos campos de internamento de Xinjiang, crianças mortas e mulheres violadas no leste da Ucrânia?", prosseguiu..Para Maldeikiene, as feridas do passado ainda não sararam. "A segunda guerra mundial terminou para nós quase cinco décadas mais tarde e reconhecemos a tragédia que testemunhámos a desenrolar-se noutras partes do mundo. É trágico que alguns países considerem os crimes contra a humanidade de alguma forma sujeitos à geografia e acreditem que estando mais longe histórica ou geograficamente estão a salvo, mas ninguém está a salvo. Os monstros totalitários crescem de cada vez que engolem as suas vítimas."."Sendo um país pequeno, a Lituânia ultrapassa a sua dimensão com esta atitude, com esta pujança na defesa dos valores", elogia Isabel Santos, deputada ao Parlamento Europeu. "A forma como enfrentaram a vaga migratória manipulada pela Bielorrússia não esteve de acordo com esses valores. Assistimos a um tratamento desumano e degradante de pessoas que já eram de si vítimas", critica de seguida a socialista portuguesa sobre a crise iniciada em junho do ano passado e instigada por Lukashenko.."O nosso objetivo, a nossa tarefa é ajudar aqueles que estão do outro lado da democracia, seja na Rússia ou em qualquer outro lugar. Por isso, por vezes, quando vemos que há necessidade de liderança, não temos medo de nos tornarmos líderes", disse Kubilius. Absolutely Free, como um álbum de Zappa..À notícia da morte de Mikhail Gorbachev, em agosto, e às subsequentes homenagens, houve quem destoasse. Foram a perestroika e a glasnost, promovidas pelo líder da URSS, que deram espaço ao movimento reformista Sajudis, em 1988. E para que dois anos depois se declarasse a independência da Lituânia, a primeira república soviética a fazê-lo. Mas foi o mesmo Gorbachev que, em resposta, impôs um bloqueio económico a Vilnius e enviou tropas. A repressão matou 14 pessoas..Twittertwitter1564903295864430593."Os seus soldados atiraram nos nossos manifestantes desarmados e esmagaram-nos sob os seus tanques. É assim que nos lembraremos dele", comentou o chefe da diplomacia Gabrielius Landsbergis, filho do líder da transição, Vytautas Landsbergis..cesar.avo@dn.pt